quinta-feira, 23 de abril de 2015

Phoenix, Christian Petzold (2014)

Tal como acontecia em Barbara, a narrativa de Phoenix orbita em torno de um eixo invisível - a 2ª Guerra Mundial - que se manifesta na superfície fílmica pela delimitação restritiva dos gestos das personagens. O condicionamento dos reflexos - a coordenação debilitada de Nelly (Nina Hoss) ao despertar; a exaltação do seu corpo perante a entoação imperativa de vozes graves - representa, no plano, o sintoma nefasto de uma doença inelutável, que se oculta em fora de campo e que exerce - a partir de um ponto invariável localizado num tempo suspenso - um efeito magnético sobre a história e as personagens.
Se, em Barbara, a economia maquinal dos gestos espelhava a elasticidade possível dos corpos face à ameaça pairante de forças repressivas - os emissários da guerra que se ocultavam oportunamente na indefinição de forma a precipitar a confissão dos conspiradores -, em Phoenix a reacção involuntária do corpo (reflexo condicionado) suspenderá a assimilação desimpedida de emoções cristalizadas no passado (anterior à guerra). Ao passo que a narrativa de Barbara se inscrevia na indefinição paralisante do período de guerra - suspensão temporal de duração indeterminada -, Phoenix constrói-se na expectativa angustiante de um período pós-catástrofe em que o peso brutal de uma herança recente se abate com estrondo sobre as personagens, obrigando à incorporação consciente de um espaço de tempo específico - a barbárie do holocausto - na cadência irrevogável do tempo cronológico.
Petzold recorre à alegoria - o rosto desfigurado de Nelly correspondendo à destruição estrepitosa da paisagem urbana - para ilustrar o impasse de um renascimento - anunciado no título -, que assentará na consistência débil de uma ferida aberta. A hesitação entre a recriação e a reconstrução de uma identidade - uma das subtilezas sagazes de um argumento virtuoso - impõe um eixo vacilante à composição narrativa, cuja definição dependerá da integração consciente do período de excepção - a guerra, o holocausto - na continuidade da História. A incapacidade dogmática de apreender a realidade inteligível - contra todas as evidências, Nelly ignora a traição de Johnny e Johnny ignora a identidade de Nelly - firma-se no recalcamento espontâneo dos episódios trágicos, e só o assomo involuntário de memórias inscritas no corpo - a reverberação da voz de Nelly no corpo de Johnny; a exposição sintomática dos caracteres sulcados na pele de Nelly - derrubará a tentação resistente de anular o passado.
Em postura ascética que obedece mais a uma identidade estética do que a determinações contingentes, Petzold não permite jamais que a expressão do virtuosismo formal se sobreponha à disciplina ética - exigência latente no peso trágico da História -, aplicando à composição narrativa o rigor irrepreensível da sobriedade formal. A intromissão ocasional de figuras de estilo recorrentes da gramática cinematográfica - o reflexo no espelho partido como signo de perturbação identitária; a ilusão expressionista de silhuetas em contraluz num anexo subterrâneo rasgado entre escombros; a névoa nocturna sobre a estação de comboios sinalizando a mudança iminente - não perturba os fundamentos de uma planificação delicada, pela qual Petzold se insurge simultaneamente contra a rigidez académica - a omissão generosa do exibicionismo formal assegura o acesso desimpedido ao argumento escrito; a angularização ligeira dos pontos de vista suaviza o compromisso vinculativo do plano frontal - e os excessos retóricos.
Se a cinefilia é, em Phoenix, um aspecto circunstancial - a referência directa a Woman in the Moon, de Fritz Lang; a memória de Les Yeux sans Visage, de Georges Franju, no rosto deformado e oculto de Nelly; a reconstrução alegórica do território alemão no pós-guerra, que retoma Lola, de Fassbinder; a sombra de Vertigo, de Hitchcock, na adopção personalizada do mito de Pigmaleão -, a excelência da premissa de base - o desencontro entre dois amantes provocado pelo desfasamento irresolúvel das respectivas linhas de tempo - parece insinuar no filme a referência a uma obra literária: A Invenção de Morel, de Adolfo Bioy Casares.
Numa composição formal de grande rigor e perfeição - sustentada por um argumento brilhante -, apenas a intermitência dramática provoca algum tipo de oscilação ao equilíbrio global. O isolamento, no plano, de um espaço de forte propensão emocional - a interacção desfasada de Nelly e Johnny delimita com precisão a área vinculada à catarse - impõe uma condição decisiva para a continuidade dramática do filme, de cuja intensidade dependerá a aproximação ou distância desse centro efervescente.
A sincronização de duas intenções concorrentes - a disposição alegórica da premissa narrativa e a propensão austera da forma fílmica - é assegurada pelo talento perspicaz de Nina Hoss. Na economia idiossincrática de gestos e meneares - em cuja descontinuidade se adivinha o assomo involuntário de expressões recalcadas -, Hoss acomoda de forma orgânica a interacção narrativa de linhas de tempo distintas - presente e passado - bem como de diferentes investimentos estéticos - a alegoria da premissa e o rigor do contexto. 
Em inflexões subtis, a actriz certifica a memória activa de uma personagem anterior - a purificação redentora de um acto sacrificial no final de Barbara - ao mesmo tempo que afirma a identidade autónoma da sua construção actual - a credulidade dogmática de Nelly em Phoenix -, assegurando com brilhantismo a leitura conjunta - Barbara, Phoenix - de um díptico notável. 


2 comentários:

  1. É interessante a forma como o Petzold aborda a questão da representação do Holocausto a partir da alegoria. O que é para mim crucial no filme é a tematização do mecanismo da alegoria enquanto força de organização interna do cinema narrativo e da própria História. Isso torna as referências para outros momentos da própria história do cinema num gesto com um alcance que não se vê com frequência por outras paragen: pessoalmente abomino a ideia de citação enquanto homenagem, como tantas vezes se lê.

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    1. Caro José, agradeço muito o seu comentário, sobretudo pela eloquência e sabedoria que demonstra. Também em mim a "citação enquanto homenagem" provoca algum desconforto. Pessoalmente, sou mais atreito a gostar de referências involuntárias - motivadas pela fixação das imagens na retina - do que de reconstruções manifestas de episódios concretos.

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