Tal como acontecia em Barbara,
a narrativa de Phoenix orbita
em torno de um eixo invisível - a 2ª Guerra Mundial - que se
manifesta na superfície fílmica pela delimitação restritiva dos
gestos das personagens. O condicionamento dos reflexos - a
coordenação debilitada de Nelly (Nina Hoss) ao despertar; a
exaltação do seu corpo perante a entoação imperativa de vozes
graves - representa, no plano, o sintoma nefasto de uma doença
inelutável, que se oculta em fora de campo e que exerce - a partir
de um ponto invariável localizado num tempo suspenso - um efeito
magnético sobre a história e as personagens.
Se, em Barbara, a economia maquinal dos gestos espelhava a
elasticidade possível dos corpos face à ameaça pairante de forças
repressivas - os emissários da guerra que se ocultavam oportunamente
na indefinição de forma a precipitar a confissão dos conspiradores
-, em Phoenix a reacção involuntária do corpo (reflexo
condicionado) suspenderá a assimilação desimpedida de emoções
cristalizadas no passado (anterior à guerra). Ao passo que a
narrativa de Barbara se inscrevia na indefinição paralisante
do período de guerra - suspensão temporal de duração
indeterminada -, Phoenix constrói-se
na expectativa angustiante de um período pós-catástrofe em que o
peso brutal de uma herança recente se abate com estrondo sobre as
personagens, obrigando à incorporação consciente de um espaço de
tempo específico - a barbárie do holocausto - na cadência
irrevogável do tempo cronológico.
Petzold recorre à alegoria - o
rosto desfigurado de Nelly correspondendo à destruição estrepitosa
da paisagem urbana - para ilustrar o impasse de um renascimento -
anunciado no título -, que assentará na consistência débil de uma
ferida aberta. A hesitação entre a recriação e a reconstrução
de uma identidade - uma das subtilezas sagazes de um argumento
virtuoso - impõe um eixo vacilante à composição narrativa, cuja
definição dependerá da integração consciente do período de
excepção - a guerra, o holocausto - na continuidade da História. A
incapacidade dogmática de apreender a realidade inteligível -
contra todas as evidências, Nelly ignora a traição de Johnny e
Johnny ignora a identidade de Nelly - firma-se no recalcamento
espontâneo dos episódios trágicos, e só o assomo involuntário de
memórias inscritas no corpo - a reverberação da voz de Nelly no
corpo de Johnny; a exposição sintomática dos caracteres sulcados
na pele de Nelly - derrubará a tentação resistente de anular o
passado.
Em postura ascética que obedece mais a uma identidade estética do
que a determinações contingentes, Petzold não permite jamais que a
expressão do virtuosismo formal se sobreponha à disciplina ética -
exigência latente no peso trágico da História -, aplicando à
composição narrativa o rigor irrepreensível da sobriedade formal.
A intromissão ocasional de figuras de estilo recorrentes da
gramática cinematográfica - o reflexo no espelho partido como signo
de perturbação identitária; a ilusão expressionista de silhuetas
em contraluz num anexo subterrâneo rasgado entre escombros; a névoa
nocturna sobre a estação de comboios sinalizando a mudança
iminente - não perturba os fundamentos de uma planificação
delicada, pela qual Petzold se insurge simultaneamente contra a
rigidez académica - a omissão generosa do exibicionismo formal
assegura o acesso desimpedido ao argumento escrito; a angularização
ligeira dos pontos de vista suaviza o compromisso vinculativo do
plano frontal - e os excessos retóricos.
Se a cinefilia é, em Phoenix,
um aspecto circunstancial - a
referência directa a Woman in the Moon,
de Fritz Lang; a memória de Les Yeux sans Visage,
de Georges Franju, no rosto deformado e oculto de Nelly; a
reconstrução alegórica do território alemão no pós-guerra, que
retoma Lola, de
Fassbinder; a sombra de Vertigo,
de Hitchcock, na adopção personalizada do mito de Pigmaleão -, a
excelência da premissa de base - o desencontro entre dois amantes
provocado pelo desfasamento irresolúvel das respectivas linhas de
tempo - parece insinuar no filme a referência a uma obra literária:
A Invenção de Morel,
de Adolfo Bioy Casares.
Numa composição formal de grande
rigor e perfeição - sustentada por um argumento brilhante -, apenas
a intermitência dramática provoca algum tipo de oscilação ao
equilíbrio global. O isolamento, no plano, de um espaço de forte
propensão emocional - a interacção desfasada de Nelly e Johnny
delimita com precisão a área vinculada à catarse - impõe uma
condição decisiva para a continuidade dramática do filme, de cuja
intensidade dependerá a aproximação ou distância desse centro
efervescente.
A sincronização de duas intenções
concorrentes - a disposição alegórica da premissa narrativa e a
propensão austera da forma fílmica - é assegurada pelo talento
perspicaz de Nina Hoss. Na economia idiossincrática de gestos e
meneares - em cuja descontinuidade se adivinha o assomo involuntário
de expressões recalcadas -, Hoss acomoda de forma orgânica a
interacção narrativa de linhas de tempo distintas - presente e
passado - bem como de diferentes investimentos estéticos - a
alegoria da premissa e o rigor do contexto.
Em inflexões subtis, a actriz
certifica a memória activa de uma personagem anterior - a
purificação redentora de um acto sacrificial no final de Barbara
- ao mesmo tempo que afirma a identidade autónoma da sua construção
actual - a credulidade dogmática de Nelly em Phoenix
-, assegurando com
brilhantismo a leitura conjunta - Barbara, Phoenix -
de um díptico notável.
É interessante a forma como o Petzold aborda a questão da representação do Holocausto a partir da alegoria. O que é para mim crucial no filme é a tematização do mecanismo da alegoria enquanto força de organização interna do cinema narrativo e da própria História. Isso torna as referências para outros momentos da própria história do cinema num gesto com um alcance que não se vê com frequência por outras paragen: pessoalmente abomino a ideia de citação enquanto homenagem, como tantas vezes se lê.
ResponderEliminarCaro José, agradeço muito o seu comentário, sobretudo pela eloquência e sabedoria que demonstra. Também em mim a "citação enquanto homenagem" provoca algum desconforto. Pessoalmente, sou mais atreito a gostar de referências involuntárias - motivadas pela fixação das imagens na retina - do que de reconstruções manifestas de episódios concretos.
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