sexta-feira, 17 de abril de 2015

O País das Maravilhas, Alice Rohrwacher (2014)

Prenuncia-se no contraste pictórico ensaiado nos primeiros planos de O País das Maravilhas - na insinuação progressiva de formas luminosas num plano a negro; no pulsar ritmado de feixes de luz sobre a pele suave de corpos envoltos em bruma - o apelo longínquo de um tempo distante. A demarcação acentuada de um conflito retórico impõe uma condição prévia à narrativa subsequente, antecipando um foco de perturbação para o processo de composição da história e das personagens. Se a abordagem formal da introdução sugere uma vinculação temporal - a sequência inicial termina com a descoberta, na noite, de um edifício em ruínas -, a estrutura narrativa do filme assentará na solidez aparente de uma premissa anacrónica, ecoando pela iminência do colapso (as ruínas) o sopro distante de fantasmas do passado.
A tolerância de Rohrwacher à incerteza formal dos quadros abstractos - e talvez o talento de um cineasta possa medir-se, antes de mais, pela sua tolerância à abstracção - indicia, simultaneamente, um teste à elasticidade narrativa do filme - explorado no prolongamento de planos sem função narrativa evidente, ou na curiosidade diletante de movimentos de câmara ondulantes -, e a exploração formal de uma premissa anacrónica e fantasmagórica - pela insinuação, no contraste pictórico dos planos, de um conflito de linhas de tempo, ou pela sugestão de sintomática incompletude na fragmentação do espaço e das personagens. Se o impasse geracional supõe, à partida, uma divergência inconciliável - a reclusão bucólica de uma família de apicultores sob o espectro da assimilação burguesa; o boicote operado pela curiosidade social das filhas adolescentes ao isolamento imposto por um pai amargurado -, o pendor artesanal do trabalho de câmara - que anda sempre à mão, sem recurso óbvio a steadycam ou a gruas - acentua o atavismo inerente à narrativa de base.
Por receio infundado, Rohrwacher socorre-se de bengalas narrativas para elucidar questões que a eficácia formal já esclarecera. A intromissão conveniente de um amigo de longa data na narrativa - que denuncia o passado da família em contexto urbano - atenua o peso da sugestão nessa construção, destacando sem necessidade o que fora já insinuado. Se a participação no concurso O País das Maravilhas reclamará oportunamente a cumplicidade entre a família de apicultores e o hermetismo arcaico da civilização etrusca (referida no concurso), a brilhante sequência inicial tinha já anunciado a filiação distensiva da superfície narrativa (as personagens) a um passado subterrâneo (fantasmas).
A vocação de Rohrwacher para a descrição subtil de texturas imateriais - a cena em que as meninas tentam agarrar um feixe de luz, como em O Espírito da Colmeia, de Victor Erice; a predilecção significativa pelo enquadramento de sombras, como em A Árvore da Vida, de Terrence Malick - faz ressaltar, por contraste, o ruído nocivo imposto pela anexação rígida de soluções explicativas. A eloquência criativa de um olhar transfigurador impõe aos corpos (e aos espaços) uma fenda temporal que o rigor circunstancial das demarcações vincadas vem enfraquecer ligeiramente.
Contudo, o vigor refrescante de uma estética decidida jamais é posto em causa. A disposição intransigente da câmara para a descoberta de formas vagas no horizonte pictórico - o filme consegue balizar o espaço de uma memória, algures entre a doçura da saudade e a iminência da derrocada - revela a rara habilidade de se renovar energicamente ao longo de uma planificação ardilosa. O esbatimento da fronteira entre realidade e imaginação - ou entre presente e passado - é consumado numa das sequências finais do filme, na qual o enquadramento táctil e inesperado de uma personagem desaparecida (fantasma) acentuará decisivamente a porosidade (fenda) de uma barreira situada entre a consistência da matéria e a liberdade do espírito.
Para além de sublinhar a adequação dos enquadramentos aproximados à emergência de fantasmas no plano - numa abordagem que parece retomar Opening Night de Cassavetes ou The Brown Bunny de Vincent Gallo -, a sequência referida precipitará a narrativa numa zona de indistinção irreversível. Como a composição de espaços e personagens ao longo do filme - a casa dos apicultores não tem qualquer barreira visível entre as divisões; os corpos parecem esquecer-se, por vezes, das personagens -, a sequência final de O País das Maravilhas reivindica, pela impossibilidade da premissa, a actuação libertadora e omnipotente da câmara sobre a matéria, que faz desaparecer as personagens do filme num movimento panorâmico sem nenhum corte evidente - proeza técnica que alude à sequência final de Profissão: Repórter, de Antonioni.
A demarcação rigorosa de uma ausência - nesta sequência final - estabelece um arco de tempo com a descoberta das ruínas na sequência inicial, fechando pertinentemente um fôlego temporal prolongado. O impacto desta sequência na superfície da história - a composição de um arco de tempo que acentua a reverberação agitada de uma superfície frágil - denuncia o estatuto acessório das adições marginais (o amigo de longa data, o concurso O País das Maravilhas) que, na tentativa de assegurar a legibilidade das subtilezas narrativas, impõem focos de destabilização inóquos à continuidade estética de um filme muito interessante.




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