terça-feira, 12 de maio de 2015

Os últimos dias, G. W. Pabst (1955)


Cinemateca, 8 de Maio de 2015, 21h30

Tectos baixos e corredores infinitos.
O filme arranca com problemas de legendagem.
Ficam apenas as imagens, os rostos, e um idioma estranho e cortante.
*
Mas, a provar que o cinema lida melhor com o absoluto do que com o concreto, o problema de legendagem foi resolvido. As vozes, agora inteligíveis, veiculam o constrangimento de base do filme, que responde à exigência implícita de um preconceito político. O cinema de propaganda - de mensagem - é tão recriminável quando aponta à direita como quando aponta à esquerda. A imagem é o território natural das ideias, e a sua predicação na rigidez de factos concretos atenua - ou extingue - a carga mística que lhe é inerente.
*
Os últimos dias de Adolph Hitler, num bunker, em Berlim.
O cimento - matéria que reveste os interiores - é o sintoma visível do aparato bélico que se desenrola no exterior. As paredes de cimento simbolizam a protecção contra o exterior, mas também a reclusão irreversível. Os conflitos no exterior - o avanço das tropas russa e americana em direcção a Berlim - são uma mancha abstracta que invade o bunker na forma imaterial de ondas de som - as notícias via rádio. A atmosfera condensa-se. A claustrofobia do lugar - tectos baixos, longos corredores - é acentuada pela sugestão fantasmática do inimigo, em fora-de-campo. No que tem de melhor, Os Últimos Dias é um filme sobre a imaginação. Sobre a construção imagética de um inimigo sem corpo.
*
O constrangimento político inviabiliza o esplendor das formas.
Os comentários - didascálias - pesam sobre a subjectividade das imagens, impondo ao olhar a rigidez de uma direcção. A iniquidade de Hitler prefigura-se mais no autoritarismo exacerbado da voz entoada do que nos gracejos ocasionais dos seus súbditos; mais na representação táctil de uma efígie diabólica e planetária (o cabelo, o bigode) do que na enunciação exaustiva dos crimes praticados. A intromissão de factos concretos na composição estética afasta o filme do domínio dos conceitos absolutos, e perturba a envolvência mística.
A ideia eleva-se, o facto fixa-se.
*
Como Resnais (Marienbad) ou Dreyer (A Paixão de Joana D'arc), Pabst é cineasta de Snapshot e de imagens ideais - Atlântida ou A Boceta de Pandora -, de forte propensão mística e abstracta. Como Welles (O Processo), Dreyer (Ordet) ou Sokurov (O Sol), Pabst é cineasta da reclusão e da claustrofobia, de grande atenção ao pendor geométrico e descritivo da forma. 


quarta-feira, 6 de maio de 2015

The refined taste of fictional characters


Fragmentos de uma entrevista concedida por Mickey Sabbath a Jamie-Lynn Sigler, no programa semanal The Refined Taste of Fictional Characters...

(...)
...enquanto olhava indiscretamente para a parte visível das minhas pernas e parecia imaginar aquilo que não conseguia ver daquele ângulo. Mickey Sabbath alterna o olhar lascivo de um tarado com a intuição omnisciente de um génio. Um génio eloquente com um handicap. Um Hannibal Lecter que trocou a antropofagia pela luxúria, e que escarnece do esclarecimento do texto à medida que a entrevista avança...
(...)
... a barba branca e comprida que, quando está sentado, lhe toca nos joelhos...
(...)
...as preferências cinematográficas (algumas surpresas) e os comentários de Sabbath às escolhas do seu Top 10...

Aleg0ria da Caverna, Sá Leão, (?)
Lolita, Stanley Kubrick, 1962
Lolita, Adrian Lane, 1997
Face-off, John Woo, 1997
Hollow Man, Paul Verhoeven, 2000
"Marco Polo", The Sopranos, 2004
Venus, Roger Mitchell, 2006
Restless, Gus van Sant, 2011
Jeune et Jolie, François Ozon, 2013

Jamie-Lynn - Aleg0ria?
Michey Sabbath - Sim.
J-L - Nunca ouvi falar deste filme, confesso.
M. S. - Uma obra-prima. O peso formativo da indústria pornográfica não deve ser menosprezado. Embora conceda que possa haver diferentes opiniões quanto à subtileza praticada no género.
J-L. - Ok. As duas versões de Lolita? Tem preferência por alguma delas?
M. S. - Dominique Swain.
J-L. - Referia-me aos filmes.
M. S. - Sim.
J-L. - [surpresa] Bem, passemos à frente. Os filmes de acção, com alguma ficção-científica pelo meio. Não sabia que era apreciador do género. O que é que o atraiu, por exemplo, em Face-Off?
M. S. - Dominique Swain...
J-L. - [revira os olhos] Isto não está a...
M. S. - ...mas também a elegância do argumento. O bandido mau e perverso que troca de cara com o polícia bom e honesto (que, como bom pai de família que é, não dá uma foda há dois anos). Depois o bandido mau e perverso regressa à casa do polícia bom e honesto e faz-se passar por ele, mas altera umas coisas por lá: come-lhe a mulher como ela já nem se lembrava que podia ser comida*, e espreita a filha adolescente (Dominique Swain de cuecas) pela fresta da porta...
J-L. - ...correr como eu planeei...
M. S. - ... quem disse que Hollywood não tinha sentido de humor?
J-L. - Passemos ao filme seguinte. Hollow Man? Pensei que, a escolher um filme de Paul Verhoeven, tivesse escolhido Basic Instinct...
M. S. - Eu sou imprevisível.
J-L. - O que o atraíu então para esse filme?
M.S. - A verosimilhança.
J-L. - O filme de um homem que se torna invisível...
M. S. - Sim.
J-L. - Onde está a verosimilhança?
M. S. - No que ele faz em seguida.
J-L. - Não compreendo.
M. S. - Qual é a primeira coisa que faz o homem invisível?
J-L. - Não faço a menor ideia.
M.S. - Entra em casa da vizinha boazona do prédio em frente e salta-lhe para cima, aproveitando que agora ela não consegue vê-lo, o que de resto me parece uma fantasia bastante plausível.
J-L. - É muito coerente nas suas escolhas, não é?
M. S. - Não costumo pensar nisso. Posso tocar-lhe na perna?
J-L. - Não. O episódio da série de televisão não é bem um filme, mas se bem me lembro é o episódio em que o James e a Edie se reconciliam, certo?
M.S. - Tu estavas lá, devias lembrar-te.
J-L. - Acho que não entrei nesse episódio.
M. S. - Entraste.
J-L. - Tenho algum receio de perguntar como é que o Mickey Sabbath...
M. S. - Então não perguntes.
J-L. - Como é que sabe?
M. S. - Lembro-me do teu decote.
J-L. - Passemos à frente...
M. S. - O que me atraiu nesse episódio foi a forma como o teu tio - o Steve Buscemi, em cujas premissas éticas eu me revejo - olhava para as tuas mamas...
J-L. - Vou-lhe pedir para ter mais respeito...
M.S. - ...Para os teus seios?
J-L. - ...e que deixe de falar de mim e do meu corpo [pausa]. Em relação ao Restless, o filme seguinte, não foi a história de amor que o cativou?
M.S. - Não.
J-L. - Admita...
M. S. - Admita-O.
J-L. - Não entendi.
M. S. - Admita-O. O verbo é transitivo. Ou costumava ser, até a eloquência dos cretinos ser largada à solta sobre a terra...
J-L. - Admita-o, então...
M. S. - Não, não o admito.
J-L. - Então porquê esta preferência?
M. S. - Estamos a falar de quê?
J-L. - Do filme Restless, de Gus van Sant, que é uma belíssima história de amor...
M.S. - Sim, Belíssima... [entoação desdenhosa]
J-L. - Algum problema com o adjectivo?
M. S. - Não, nenhum problema.
J-L. - Então responda-me à...
M. S. - ...é engraçada a tentação do superlativo na linguagem esclarecida que vocês usam...
J-L. - Vocês?
M. S. - Na verdade adormeci durante a exibição do filme...
J-L. - [Pausa. Confusa, passa os olhos pelas folhas que tem à frente.] Mas Restless faz parte da sua lista...
M. S. - Sim.
J-L. - [impaciente]...porquê?
M.S. - O único japonês que entra no filme é uma alucinação, o que é um golpe de génio...
J-L. - Não sabia que era racista.
M. S. - E não sou.
J-L. - Parece-me incoer...
M. S. - ...não gosto de japoneses.
J-L. - Em relação a Venus e Jeune et Jolie estamos esclarecidos...
M. S. - Ok.
J-L. - Foi a questão da perversão aquilo que o atraiu nestes dois, não foi?
M. S. - Não sei do que estás a falar.
J-L. - A rapariga de boas famílias que se prostitui em hotéis com homens mais velhos...
M. S. - Estou a ouvir.
J-L. - [Expressão de pânico] Isso é uma intumescência nas suas calças?
M. S. - Não, é o meu pau. Embora na minha época lhe chamássemos...
J-L. - ...vou dar por terminada esta entrevista...
M.S. - ...então porquê? É que a tua descrição foi tão precisa...
J-L. - [levanta-se. Tem uma expressão ofendida] ...que foi irresistível para si...
M. S. - [Mantém-se sentado. Olha para cima enquanto fala]. O que tem a resistência a ver com isto? Estavas a falar de uma rapariga alta, nova, de cabelo castanho-claro, húmido, que se deita com homens mais velhos pelo gozo que isso lhe dá... [olha para as calças] Aí está ele outra vez... Pareceu-me apenas natural...
J-L. - Adeus Mickey.
M. S. - Vais chamar o teu pai, não vais?
J-L. - O meu... Ah, ok**.
M. S. - Vamos acabar isto, eu porto-me bem.
J-L. - Parece-me que já acabámos.
M. S. - Falta um filme.
J-L. - O quê?
M.S. - Falta um filme.
J-L. - [Consulta a lista. Olha para a produtora do programa]. Bem, parece que temos tempo para mais uma das suas respostas.
M. S. - Ainda bem.
J-L. - Tem mesmo um filme ou vai inventar mais qualquer coisa?
M. S. - Na verdade, os outros é que foram inventados.
J-L. - E o décimo não foi?
M. S. - Não. E, sendo assim, o filme que falta é o primeiro e não o décimo, porque foi o único em que pensei realmente enquanto vinha para cá.
J-L. - [Exausta] Então e qual é o filme?
M. S. - Match Point, do Woody Allen, de 2005.

Aleg0ria da Caverna, Sá Leão, (?)
Lolita, Stanley Kubrick, 1962
Lolita, Adrian Lane, 1997
Face-off, John Woo, 1997
Hollow Man, Paul Verhoeven, 2000
"Marco Polo", The Sopranos, 2004
Match Point, Woody Allen, 2005
Venus, Roger Mitchell, 2006
Restless, Gus van Sant, 2011
Jeune et Jolie, François Ozon, 2013

J-L. - Que é um belíssimo filme...
M.S. - Sim, um belíssimo filme...
J-L. - Pode parar com o sarcasmo?
M. S. - Posso.
J-L. - Se bem me lembro, o Woody adopta muito livremente a obra de Dostoievsky, Crime e Castigo...
M. S. - Sim, muito livremente...
J-L. - [Inquisitiva] Pensei que tinha parado com o sarcasmo...
M. S. - Sim.
J-L. - Quando repete o que eu digo dá-me a ideia de que está a ser sarcástico.
M. S. - É um equívoco frequente.
J-L. - O quê?
M.S. - Interpretar mal a repetição como sendo sarcástica.
J-L. - Qual o significado da repetição, então?
M.S. - Regra geral, a repetição é usada para enfatizar uma ideia ou pensamento. Também pode ser usada como figura de estilo, embora esse me pareça um recurso francamente pobre da ferramenta.
J-L. - Porque é que repetiu o que eu disse? - era esta a minha pergunta.
M. S. - Concordância. Também me parece que o Woody [entoação sarcástica] adapta muito livremente a obra de Dostoievsky...
J-L. - De que forma?
M. S. - Em primeiro lugar, a vida sexual do Rodia evoluiu bastante desde que trocou São Petersburgo por Londres...
J-L. - ...e mais alguma coisa?
M. S. - Sim, o que omiti na declaração de abertura é, na verdade, a tese fundamental da minha escolha.
J-L. - Pode destapar um pouco o véu?
M. S. - Se tu subires um pouco a saia.
J-L. - [Jamie-Lynn faz uma expressão sensual e sobe ligeiramente a saia, deixando à vista um pouco de uma liga].
M. S. - Não foi bem o que esperava, mas tento não desrespeitar os acordos que estabeleço.
J-L. - [Puxa a saia para baixo com irritação. Revira os olhos] E...?
M. S. - É comum recorrer-se a conjunções para estabelecer uma ligação entre duas ideias ou para enumerar elementos, mas os miúdos usam-nas para acentuar o enorme vazio que existe entre tudo aquilo que não sabem e tudo aquilo que desconhecem...
J-L. - Com quem julga que está a falar?
M.S. - Jamie-Lynn?
J-L. - Vai responder à pergunta?
M. S. - Contigo, parecia-me óbvio.
J-L. - [Consulta a produtora do programa com o olhar. Torna a olhar para Sabbath em desespero]. Porquê a escolha de Match Point para os seus filmes preferidos?
M. S. - Acho que o factor decisivo - e genial - é o ponto de partida. Um homem que se casa para espicaçar a relação adúltera merece toda a minha admiração. E parece-me uma solução inovadora no que respeita às possibilidades de tesão de um indivíduo.

* Fuck her brains out no original
** Mickey refere-se desdenhosamente a Tony Soprano, personagem interpretada por James Gandolfini na série The Sopranos, que fazia de pai de Meadow Soprano, personagem interpretada por Jamie-Lynn Sigler.


Um pormenor do decote de Jamie-Lynn Sigler no episódio referido por Sabbath

domingo, 3 de maio de 2015

Os Sonâmbulos, Volume I - Pasenow ou o Romantismo, Hermann Broch (cont)

Quem segue alguém na rua, ainda que por mero automatismo e com uma indiferença aparente, não pode deixar de em breve formular vários desejos, bons e maus, a respeito da criatura a quem segue...
(...)
O amor é algo de absoluto (...) e se o absoluto tem de se exprimir em termos terrenos, cai sempre no patético, visto ser indemonstrável...
(...)
Só há uma coisa verdadeiramente patética e tem um nome: eternidade. E, como não há para o homem eternidade positiva, é preciso que ela se torne negativa e chama-se: não-tornar-a-ver. Se eu partir, está aí a eternidade. Então você estará eternamente longe e eu posso dizer que a amo...
(...)

Creio com a mais profunda fé que só numa terrível exacerbação da estranheza, só quando esta é, por assim dizer, levada ao infinito, ela se pode transformar no seu oposto, no conhecimento absoluto, e pode então desabrochar aquilo que, à sua frente, paira como objectivo inatingível do amor, mas que o constitui: o mistério da unidade. De uma lenta habituação recíproca, de uma recíproca familiarização, não nasce mistério nenhum...

edições 70
trad. António Ferreira Marques

Hermann Broch

sexta-feira, 1 de maio de 2015

Os Sonâmbulos, Volume I - Pasenow ou o Romantismo, Hermann Broch

(...)
Quanto ao assunto da farda, Bertrand poderia exprimir-se mais ou menos assim:
Tempos houve em que a Igreja era o único juiz a julgar o homem e todos tinham consciência de que eram pecadores. Hoje é o pecador que tem de julgar o pecador, para impedir que todos os valores soçobrem na anarquia e, em lugar de chorar com ele, o irmão sente-se na obrigação de dizer ao irmão: <procedeste mal>. E se outrora o traje clerical, como algo de inumano, era o único a distinguir-se dos outros, e se então, mesmo no uniforme e no hábito talar, ainda transparecia o civil, tendo-se perdido a grande intolerância da fé houve que pôr a toga terrena no lugar da celeste, tornou-se necessário que a sociedade se dividisse em hierarquias e uniformes terrenos e que estes se elevassem a valores absolutos, substituindo a fé.
(...)
E como é sempre prova de romantismo tornar o terreno absoluto, o austero e verdadeiro romantismo do nosso tempo é o romantismo da farda, como se houvesse uma ideia supraterrena e supratemporal da farda, ideia que não existe, mas possui uma tal intensidade que se apodera do homem com muito mais força do que qualquer outra vocação terrena, ideia inexistente e no entanto tão impetuosa que converte o portador da farda num possesso da farda, nunca num profissional no sentido civil da palavra, talvez, precisamente, porque o homem de farda se sente repleto de consciência de realizar o estilo de vida próprio da sua época e de realizar assim, igualmente, a segurança da sua própria existência.
(...)

...um verdadeiro uniforme assegura a quem o enverga uma nítida demarcação da sua pessoa em relação ao mundo envolvente...

edições 70
trad. António Ferreira Marques



They Live, John Carpenter (1988)

quinta-feira, 30 de abril de 2015

Offbeat, Cais Sodré Funk Connection (2015) - Videoclip

O videoclip de Offbeat alicerça-se no apelo cantado à diversidade - Baby I don't care if you're black or white -, signo populista - e imagem de marca dos Cais Sodré Funk Connection - que é traduzido no vídeo pela reunião improvável de personagens-tipo com proveniências díspares - e pela vinculação subreptícia dessa heterogeneidade a uma modelação erótica variada.
O trajecto narrativo do videoclip transita dos modelos consentâneos do erotismo conservador - a reprodução de clichés do erotismo masculino e feminino - para a alteridade fugidia de padrões alternativos - a sexualidade indefinida do travestimento ou o fulgor tardio de uma senhora idosa. A estranheza dessa imanência sexual é destacada pela alternância dos episódios eróticos com capítulos de abstracção nonsense - a criança com a espingarda, o anão mascarado, o registo performativo dos músicos -, conferindo ao todo a textura de um exercício de bestialidade - em contextualização que lembra vagamente o videoclip Fluorescent Adolescent (2007), dos Arctic Monkeys. 
Os diferentes registos são organizados em ritmo compassado pelos quadros fixos - em planos frontais inspirados em Wes Anderson -, que funcionam tanto melhor quanto mais estilizados. Os planos nocturnos, em que se acentua o contraste entre zonas de luz e sombra - o plano de um músico encostado à parede, destacado do cone de sombra circundante pela luz picada que cai sobre si; a dança do homem mascarado num corredor sombrio, iluminada pelas centelhas faiscantes de uma tocha acesa -, veiculam perfeitamente a carga de sombra evocada pela música. Em sentido inverso, os planos captados de dia - sobretudo aqueles em que se explora a profundidade de campo - realçam excessivamente a textura rugosa do espaço, perdendo-se pela precisão do contexto a aura sombria destacada anteriormente.  


Quand Je Ne Dors Pas, Tommy Weber (2015) - Indie Lisboa

Par hasard.
Perfilado como herdeiro de Truffaut por um espectador, Tommy Weber - que esteve presente na sessão de dia 29 de Abril, no Cinema Ideal - disse que terá sido par hasard que a personagem principal de Quand je ne dors pas ganhou o nome de Antoine (reagindo à suposta filiação do protagonista com Antoine Doinel). Contudo, lá foi explicando que Les 400 Coups (1959) - assim como os restantes filmes da série de Truffaut com Jean-Pierre Léaud - era sombra imanente da sua reduzida equipa de produção.
Ainda que fosse apenas por circunstância - e não é -, o contexto estético de Quand je ne dors pas - a noite de Paris, o discurso errático de um protagonista, a interferência das canções na construção narrativa - evocaria sempre o peso formativo de uma herança cultural. Conquanto Weber não consinta - fala de um filme escrito e realizado por instinto -, os elementos fílmicos circunscrevem um território balizado por algumas referências incontornáveis: À Bout de Souffle (1960) de Godard à cabeça, mas também Le Signe du Lion (1962) de Éric Rohmer ou a referida série de Truffaut com Léaud.
Em À Pala de Walsh, João Lameira destaca a afinidade de Quand je ne dors pas com After Hours (1985), e percebe-se a alusão. Mas ao passo que no filme de Scorcese a finalidade manifesta de um desejo - como Ulisses, a personagem apenas quer regressar a casa - era obstruída por uma série de circunstâncias bizarras, em Quand je ne dors pas é o valor imperativo dos episódios circunstanciais - os encontros fortuitos, a sorte na raspadinha - que define o destino de Antoine. Se necessidade houvesse de uma referência além-Atlântico - e não me parece que haja -, Permanent Vacation (1980) de Jim Jarmusch seria um exemplo mais representativo da dinâmica deste filme.
Weber atenua a fadiga inerente à representação exaustiva de um percurso errático - o filme é manifestamente incoerente, e o fôlego intermitente do fio condutor depende do valor da peripécia relatada - pela generosidade formal com que aborda as cenas. A intromissão ocasional do estilo em Quand je ne dors pas tem valor de contingência, e deve-se sobretudo à descrição cuidadosa da personagem principal - a planificação aproximada; a letra sibilada de canções sem música - ou a imponderáveis de produção - o recurso ao preto e branco estabiliza as irregularidades cromáticas; os travellings com recurso a Steadycam têm para a narrativa o estatuto de fuga, e contornam a proibição urbana do uso de tripés.
Para além dos restantes pressupostos inerentes a um processo criativo, a identidade do filme independente deve ser preservada (também) pelo pendor artesanal dos métodos utilizados. Quand je ne dors pas é descarnado e desinteressado, e isso - acima de tudo o resto - valida-o como objecto Indie.


***


quarta-feira, 29 de abril de 2015

Homesick, Jakob M. Erwa (2015) - IndieLisboa

Ao nível da forma, Homesick anda à boleia de Michael Haneke no que este tem de bom - o tratamento do som como elemento de perturbação do espaço; a compartimentação cuidada dos interiores - e no que tem de mau - a tendência defensiva da forma na restrição geométrica dos planos; a tentativa de desconfortar o espectador pela familiaridade forçada da sequência final.
A premissa do filme - o impacto de uma mudança de casa na vida de um jovem casal - retoma Rosemary's Baby, de Polanski, do qual herda a questão da permeabilidade de um apartamento face à acção vigilante e inóspita de estranhos, ou a obsessão crescente de uma rapariga solitária face a fenómenos de inquietante estranheza. Conquanto o primeiro terço seja interessante - quando essa estranheza ainda não se concretizou em figuração de loucura -, a exigência (auto-imposta) de um desfecho nítido assoma de forma prejudicial à segunda metade do filme.
Num contratempo recorrente de argumentos que crescem em redor de um esquema binário - serão os fenómenos experimentados por Jessica o produto da sua loucura ou o resultado de uma maquinação? -, a antevisão distante de uma solução para a narrativa condiciona o desenvolvimento do filme, compromentendo-o com essa dúvida central. As reviravoltas que antecedem o desenlace ilustram mais a incerteza do realizador do que a pretensa loucura da protagonista.
Ainda que a primeira metade de Homesick tenha momentos de bom suspense - a textura do digital nos belíssimos planos do exterior do edifício; o tratamento claustrofóbico da luz e do som; a sequência em que, a meio da noite, Jessica sai à rua e desaparece entre as sombras -, o argumento escrito parece ter sido pensado apenas para uma curta-metragem, e o filme não sobrevive ao improviso que o arrasta dolorosamente até final.

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quinta-feira, 23 de abril de 2015

Phoenix, Christian Petzold (2014)

Tal como acontecia em Barbara, a narrativa de Phoenix orbita em torno de um eixo invisível - a 2ª Guerra Mundial - que se manifesta na superfície fílmica pela delimitação restritiva dos gestos das personagens. O condicionamento dos reflexos - a coordenação debilitada de Nelly (Nina Hoss) ao despertar; a exaltação do seu corpo perante a entoação imperativa de vozes graves - representa, no plano, o sintoma nefasto de uma doença inelutável, que se oculta em fora de campo e que exerce - a partir de um ponto invariável localizado num tempo suspenso - um efeito magnético sobre a história e as personagens.
Se, em Barbara, a economia maquinal dos gestos espelhava a elasticidade possível dos corpos face à ameaça pairante de forças repressivas - os emissários da guerra que se ocultavam oportunamente na indefinição de forma a precipitar a confissão dos conspiradores -, em Phoenix a reacção involuntária do corpo (reflexo condicionado) suspenderá a assimilação desimpedida de emoções cristalizadas no passado (anterior à guerra). Ao passo que a narrativa de Barbara se inscrevia na indefinição paralisante do período de guerra - suspensão temporal de duração indeterminada -, Phoenix constrói-se na expectativa angustiante de um período pós-catástrofe em que o peso brutal de uma herança recente se abate com estrondo sobre as personagens, obrigando à incorporação consciente de um espaço de tempo específico - a barbárie do holocausto - na cadência irrevogável do tempo cronológico.
Petzold recorre à alegoria - o rosto desfigurado de Nelly correspondendo à destruição estrepitosa da paisagem urbana - para ilustrar o impasse de um renascimento - anunciado no título -, que assentará na consistência débil de uma ferida aberta. A hesitação entre a recriação e a reconstrução de uma identidade - uma das subtilezas sagazes de um argumento virtuoso - impõe um eixo vacilante à composição narrativa, cuja definição dependerá da integração consciente do período de excepção - a guerra, o holocausto - na continuidade da História. A incapacidade dogmática de apreender a realidade inteligível - contra todas as evidências, Nelly ignora a traição de Johnny e Johnny ignora a identidade de Nelly - firma-se no recalcamento espontâneo dos episódios trágicos, e só o assomo involuntário de memórias inscritas no corpo - a reverberação da voz de Nelly no corpo de Johnny; a exposição sintomática dos caracteres sulcados na pele de Nelly - derrubará a tentação resistente de anular o passado.
Em postura ascética que obedece mais a uma identidade estética do que a determinações contingentes, Petzold não permite jamais que a expressão do virtuosismo formal se sobreponha à disciplina ética - exigência latente no peso trágico da História -, aplicando à composição narrativa o rigor irrepreensível da sobriedade formal. A intromissão ocasional de figuras de estilo recorrentes da gramática cinematográfica - o reflexo no espelho partido como signo de perturbação identitária; a ilusão expressionista de silhuetas em contraluz num anexo subterrâneo rasgado entre escombros; a névoa nocturna sobre a estação de comboios sinalizando a mudança iminente - não perturba os fundamentos de uma planificação delicada, pela qual Petzold se insurge simultaneamente contra a rigidez académica - a omissão generosa do exibicionismo formal assegura o acesso desimpedido ao argumento escrito; a angularização ligeira dos pontos de vista suaviza o compromisso vinculativo do plano frontal - e os excessos retóricos.
Se a cinefilia é, em Phoenix, um aspecto circunstancial - a referência directa a Woman in the Moon, de Fritz Lang; a memória de Les Yeux sans Visage, de Georges Franju, no rosto deformado e oculto de Nelly; a reconstrução alegórica do território alemão no pós-guerra, que retoma Lola, de Fassbinder; a sombra de Vertigo, de Hitchcock, na adopção personalizada do mito de Pigmaleão -, a excelência da premissa de base - o desencontro entre dois amantes provocado pelo desfasamento irresolúvel das respectivas linhas de tempo - parece insinuar no filme a referência a uma obra literária: A Invenção de Morel, de Adolfo Bioy Casares.
Numa composição formal de grande rigor e perfeição - sustentada por um argumento brilhante -, apenas a intermitência dramática provoca algum tipo de oscilação ao equilíbrio global. O isolamento, no plano, de um espaço de forte propensão emocional - a interacção desfasada de Nelly e Johnny delimita com precisão a área vinculada à catarse - impõe uma condição decisiva para a continuidade dramática do filme, de cuja intensidade dependerá a aproximação ou distância desse centro efervescente.
A sincronização de duas intenções concorrentes - a disposição alegórica da premissa narrativa e a propensão austera da forma fílmica - é assegurada pelo talento perspicaz de Nina Hoss. Na economia idiossincrática de gestos e meneares - em cuja descontinuidade se adivinha o assomo involuntário de expressões recalcadas -, Hoss acomoda de forma orgânica a interacção narrativa de linhas de tempo distintas - presente e passado - bem como de diferentes investimentos estéticos - a alegoria da premissa e o rigor do contexto. 
Em inflexões subtis, a actriz certifica a memória activa de uma personagem anterior - a purificação redentora de um acto sacrificial no final de Barbara - ao mesmo tempo que afirma a identidade autónoma da sua construção actual - a credulidade dogmática de Nelly em Phoenix -, assegurando com brilhantismo a leitura conjunta - Barbara, Phoenix - de um díptico notável. 


sexta-feira, 17 de abril de 2015

O País das Maravilhas, Alice Rohrwacher (2014)

Prenuncia-se no contraste pictórico ensaiado nos primeiros planos de O País das Maravilhas - na insinuação progressiva de formas luminosas num plano a negro; no pulsar ritmado de feixes de luz sobre a pele suave de corpos envoltos em bruma - o apelo longínquo de um tempo distante. A demarcação acentuada de um conflito retórico impõe uma condição prévia à narrativa subsequente, antecipando um foco de perturbação para o processo de composição da história e das personagens. Se a abordagem formal da introdução sugere uma vinculação temporal - a sequência inicial termina com a descoberta, na noite, de um edifício em ruínas -, a estrutura narrativa do filme assentará na solidez aparente de uma premissa anacrónica, ecoando pela iminência do colapso (as ruínas) o sopro distante de fantasmas do passado.
A tolerância de Rohrwacher à incerteza formal dos quadros abstractos - e talvez o talento de um cineasta possa medir-se, antes de mais, pela sua tolerância à abstracção - indicia, simultaneamente, um teste à elasticidade narrativa do filme - explorado no prolongamento de planos sem função narrativa evidente, ou na curiosidade diletante de movimentos de câmara ondulantes -, e a exploração formal de uma premissa anacrónica e fantasmagórica - pela insinuação, no contraste pictórico dos planos, de um conflito de linhas de tempo, ou pela sugestão de sintomática incompletude na fragmentação do espaço e das personagens. Se o impasse geracional supõe, à partida, uma divergência inconciliável - a reclusão bucólica de uma família de apicultores sob o espectro da assimilação burguesa; o boicote operado pela curiosidade social das filhas adolescentes ao isolamento imposto por um pai amargurado -, o pendor artesanal do trabalho de câmara - que anda sempre à mão, sem recurso óbvio a steadycam ou a gruas - acentua o atavismo inerente à narrativa de base.
Por receio infundado, Rohrwacher socorre-se de bengalas narrativas para elucidar questões que a eficácia formal já esclarecera. A intromissão conveniente de um amigo de longa data na narrativa - que denuncia o passado da família em contexto urbano - atenua o peso da sugestão nessa construção, destacando sem necessidade o que fora já insinuado. Se a participação no concurso O País das Maravilhas reclamará oportunamente a cumplicidade entre a família de apicultores e o hermetismo arcaico da civilização etrusca (referida no concurso), a brilhante sequência inicial tinha já anunciado a filiação distensiva da superfície narrativa (as personagens) a um passado subterrâneo (fantasmas).
A vocação de Rohrwacher para a descrição subtil de texturas imateriais - a cena em que as meninas tentam agarrar um feixe de luz, como em O Espírito da Colmeia, de Victor Erice; a predilecção significativa pelo enquadramento de sombras, como em A Árvore da Vida, de Terrence Malick - faz ressaltar, por contraste, o ruído nocivo imposto pela anexação rígida de soluções explicativas. A eloquência criativa de um olhar transfigurador impõe aos corpos (e aos espaços) uma fenda temporal que o rigor circunstancial das demarcações vincadas vem enfraquecer ligeiramente.
Contudo, o vigor refrescante de uma estética decidida jamais é posto em causa. A disposição intransigente da câmara para a descoberta de formas vagas no horizonte pictórico - o filme consegue balizar o espaço de uma memória, algures entre a doçura da saudade e a iminência da derrocada - revela a rara habilidade de se renovar energicamente ao longo de uma planificação ardilosa. O esbatimento da fronteira entre realidade e imaginação - ou entre presente e passado - é consumado numa das sequências finais do filme, na qual o enquadramento táctil e inesperado de uma personagem desaparecida (fantasma) acentuará decisivamente a porosidade (fenda) de uma barreira situada entre a consistência da matéria e a liberdade do espírito.
Para além de sublinhar a adequação dos enquadramentos aproximados à emergência de fantasmas no plano - numa abordagem que parece retomar Opening Night de Cassavetes ou The Brown Bunny de Vincent Gallo -, a sequência referida precipitará a narrativa numa zona de indistinção irreversível. Como a composição de espaços e personagens ao longo do filme - a casa dos apicultores não tem qualquer barreira visível entre as divisões; os corpos parecem esquecer-se, por vezes, das personagens -, a sequência final de O País das Maravilhas reivindica, pela impossibilidade da premissa, a actuação libertadora e omnipotente da câmara sobre a matéria, que faz desaparecer as personagens do filme num movimento panorâmico sem nenhum corte evidente - proeza técnica que alude à sequência final de Profissão: Repórter, de Antonioni.
A demarcação rigorosa de uma ausência - nesta sequência final - estabelece um arco de tempo com a descoberta das ruínas na sequência inicial, fechando pertinentemente um fôlego temporal prolongado. O impacto desta sequência na superfície da história - a composição de um arco de tempo que acentua a reverberação agitada de uma superfície frágil - denuncia o estatuto acessório das adições marginais (o amigo de longa data, o concurso O País das Maravilhas) que, na tentativa de assegurar a legibilidade das subtilezas narrativas, impõem focos de destabilização inóquos à continuidade estética de um filme muito interessante.




terça-feira, 14 de abril de 2015

Olhos Grandes, Tim Burton (2014)

A improvável agitação formal dos primeiros planos de Olhos Grandes - das tangenciais elipses de tempo impostas pelos jump cuts à subjectivização turbulenta determinada pelo uso da câmara à mão - indicia menos a perturbação interior das personagens representadas do que a indecisão estética do seu criador. O aparato formal dessa primeira sequência denuncia a consistência debilitada dos fundamentos narrativos do filme, e preconiza um trajecto acidentado que jamais silenciará a sua própria indefinição.
Ao invés de crescer em torno de um eixo sólido e esclarecido, a narrativa de Olhos Grandes ramifica-se a cada nova sequência, impondo ao espectador a assimilação insustentável de múltiplas direcções, seja ao nível do tema - a insubordinação da mulher talentosa à demarcação prevista pelos parâmetros sociais; o crescimento viral e ubíquo de um ícone emancipado; a divergência irrevogável entre a reclusão criativa e a exposição mediática - ou do género - a intromissão distensiva do biopic pelo recurso a imagens de arquivo; a expectativa do drama familiar perfilada na soturnidade claustrofóbica do espaço interior; a incursão tardia pela comédia burlesca na histriónica sequência de tribunal -, hipotecando pelo avanço hesitante a possibilidade de um compromisso emocional desimpedido.
A renovação titubeante de um artifício narrativo recorrente - a marginalidade solitária do artista enclausurado, categoria em que Margaret Keane se encontra com Edward Scissorhands ou Willy Wonka - é pronunciada por Tim Burton pela sobreposição solene do cenário às personagens: a concluir o preâmbulo, a agitação da câmara dá lugar a uma sequência de planos fixos perfeitamente enquadrados, que mostram Margaret abandonar a polidez sofisticada de uma rua colorida e cintilante (um pastiche da rua em que se desenrolava a acção de Eduardo Mãos-de-Tesoura) e reaparecer, depois de um corte, na indistinção asfixiante de um contexto urbano.
A deslocação geográfica do sujeito poético - que passa da imaginação onírica ao anonimato despersonalizante - anuncia a iminência de um conflito que, no entanto, só timidamente se manifesta. Se, em iniciativa inaudita, Burton suspende o credo da fábula e aquiesce à representação de um cenário realista, a inovação pictórica serve menos a circunscrição localizada de uma zona de tensão do que a renovação previsível da premissa convencional. A destruição redentora da indistinção urbana por intermédio de um olhar in(ter)ventivo - hipótese prefigurada na imagem dos Olhos Grandes e sugerida pela irrupção de Margaret no aparato amorfo da cidade - é preterida negligentemente em favor da cómoda variação narrativa sobre um tema persistente. 
Ao invés de lhe impor uma inflexão decisiva, a tímida tentativa de fazer abalar as convenções internas da obra de Tim Burton - ao deslocar o epicentro da acção para um contexto de índole realista - reforça involuntariamente a relação de dependência que essa obra mantém com a eloquência impositiva dos cenários. A incapacidade de satisfazer a premissa metafórica do título - e transferir o centro óptico do filme para os Olhos Grandes - evidencia a ineficácia da efabulação mágica face ao quotidiano austero, validando de forma inadvertida a solução narrativa contestada no filme: a do estatuto imprescindível de uma mediação deletéria (Walter Keane) face à insuficiência transfiguradora do impulso artístico. 


sábado, 11 de abril de 2015

The Myth of the American Sleepover, David Robert Mitchell (2010)

A atmosfera árida e abafada da primeira parte de The Myth of the American Sleepover tem a dupla função de precipitar um contraste pictórico flagrante com o estilo efeverscente de uma noite anunciada - o Sleepover do título - e de ilustrar de forma decidida a indefinição paralisante que ocorre em períodos de transição intensos. A obscuridade sintomática de uma moldura urbana degradada - a cidade de Detroit, abalada pela crise económica - enquadra, em narrativas cruzadas, o coming of age indeciso de vários adolescentes vulneráveis, cujas histórias - a frustração tardia de uma rapariga conspíqua perante a iminência do final do verão; a inoperância obsessiva de um universitário fragilizado por um desgosto amoroso; a expectativa romântica de um rapaz ingénuo e resoluto - escrevem na brevidade pendular de um intervalo entre duas etapas.
A demarcação rigorosa de uma unidade de tempo particular - a noite do Sleepover - precipita a efabulação mítica de panoramas improváveis e convida à previsão licenciosa de revelações milagrosas. A suspensão temporária do tempo e das regras - o único adulto que aparece no filme está a dormir - inflama as possibilidades da excepção, reforçando a convicção dogmática de um grupo de adolescentes na iminência de uma solução personalizada que traga resposta aos seus desejos ocultos.
Afastado por convicção de uma linguagem marcadamente geracional - que encontra na movimentação turbulenta da câmara o seu princípio operativo -, David Robert Mitchell consolida um raro esclarecimento estético na composição cuidada dos planos ou no aproveitamento dinâmico da banda sonora - entrada harmoniosa das músicas; transições subtis de som extra-diegético para som diegético -, pese embora não procure refugiar-se em qualquer padrão de estilo restritivo. Com um domínio seguro de um vasto leque de soluções formais - da suavidade temerária do slow motion à abstracção intrépida da câmara em cones de sombra; da previsibilidade musical de sequências de montagem à representação táctil de rostos em close-up -, Mitchell ilustra a influência anestesiante de uma atmosfera de excepção no percurso confuso e hesitante das personagens representadas.
Perfila-se na reflexão paciente de The Myth of the American Sleepover sobre a atmosfera excepcional de uma noite - por vezes a câmara esquece por completo as coordenadas espaciais dos lugares e das personagens, e a imagem nocturna dá lugar a uma abstracção de cores e formas que assomam indiscriminadamente da escuridão - a presença de uma herança estética com fundamentos bem assentes. Se a composição pictórica dos cenários nocturnos reclama a filiação a Gregory Crewdson - o cruzamento de excertos narrativos no interior do mesmo plano; a sobreposição encenada dos corpos ao cenário; a iluminação focalizada de narrativas paralelas -, o fantasma incisivo de John Carpenter manifesta-se na dinâmica conflitual que opõe o espaço interior ao exterior (Assault on Precint 13th, The Thing), na acção imprevisível de um grupo organizado (Prince of Darkness, The Fog, Ghosts of Mars), ou na representação material de um intervalo de tempo encapsulado (Escape from N.Y., Escape from L.A.), tema para o qual a sequência na fábrica abandonada é um catalisador oportuno.
Conquanto a cumplicidade filial de David Robert Mitchell possa alargar-se ainda a outras cinematografias - The Myth of the American Sleepover estará algures entre a contemplação melíflua de Gus van Sant e a textura abrasiva de Antonio Campos, ou entre a subtileza reflexiva de Hal Hartley e o torpor indiferente de Sofia Coppola -, a vinculação do filme a um programa referencial não atenua a validade de um estilo autónomo e distintivo.
A delimitação de uma invariável narrativa - a atmosfera nocturna - permite a gestão eficaz da montagem paralela e garante a elasticidade necessária à inclusão de sequências de risco, como a excelente sequência da dança de Maggie, ou a reprodução formal dos códigos do Slasher (a silhueta no corredor escuro, a rapariga deitada na banheira). A coexistência de várias histórias na mesma linha de tempo nunca perturba o equilíbrio geral do filme, ancorando-se a coerência narrativa na representação estilizada dos cenários nocturnos - o centro nevrálgico do filme, e o pressuposto estético de uma construção global muito feliz.  


quarta-feira, 8 de abril de 2015

Leviatã, Andrey Zvyagintsev (2014)

O contratempo óbvio e reincidente de cinematografias radicadas no rigor formal do plano fixo prende-se com a dificuldade de articular o quadro cristalizado com as solicitações (narrativas e formais) de movimento. Zvyagintsev jamais cede a variações da métrica e, se a composição cuidada dos quadros serve a descrição atenta e precisa do espaço da acção, as personagens ressentem-se da invariabilidade de tomadas de vista da câmara, assomando ao plano como criações incompletas e espartilhadas, que anunciam - na hesitação da sua corporização - um conflito entre a matéria equívoca e imprevisível dos corpos e a textura impoluta dos planos.
A opção de arredar das personagens o domínio da mitologia - pronunciado no título e patente na composição atmosférica do espaço - inscreve uma ordem conflitual na estrutura de Leviatã. Se Zvyagintsev descobre, na duração e no rigor dos enquadramentos, o fascínio feérico exercido pela morfologia acidentada dos lugares representados, jamais possibilita, no entanto, que esse encantamento se abata sobre as personagens do filme. O realismo material que enquadra o desenvolvimento narrativo - e que vai do impasse legal ao drama familiar - concretiza um conflito estético (e sensorial) para o qual Zvyagintsev nunca encontra uma solução ágil. A opção de segregar, no plano, os domínios da magia (mito) e do prosaico (humano), incorre na encenação de um conflito dialético e ruidoso, que perturba a apreensão da continuidade fílmica ao exigir que o espectador alterne a contemplação desimpedida do mágico com a identificação emocional no conflito narrativo.
A perturbação fílmica causada pela segregação, no plano, dos dois domínios (mitológico e humano), é tanto maior quanto o realismo empregue se manifeste insuficiente para a propulsão emocional do espectador. Algures entre a distância figurativa de Bresson e a entrega desimpedida de Cassavetes, as coordenadas do trabalho de actores parecem ser menos o resultado de uma preferência estética do que a consequência de uma gestão incapaz. Tanto assim é que as sequências de maior compromisso emocional - as duas cenas em que se concretiza o adultério, a reacção explosiva de Kolya, o desaparecimento de Lylia - acontecem em fora de campo. A fragilidade da abordagem realista é denunciada também pelo maneirismo excessivo das personagens, tomando o exagero dos gestos - a voz arrastada dos bêbedos, as gargalhadas despropositadas em cenas improváveis - o lugar da insuficiência das emoções.
Herdeiro de uma tradição cultural e intelectual de perfil marcadamente idiossincrático, Zvyagintsev parece conformar-se a uma linguagem formal indistinta e (cada vez mais) planetária, sem rasgos identitários que a destaquem de uma competência algo anódina. A articulação entre planos não difere grandemente das práticas correntes no cinema de expressão anónima e industrial, em que se sacrifica a continuidade emocional das cenas em favor da alternância fugaz entre narrativas paralelas.
A descrição de um lugar em ruínas - as ossadas de monstros marítimos, os frescos oxidados na igreja deteriorada, as barcaças de pesca engolidas pelo mar - nunca abandona o âmbito da analogia, jamais se interpondo no percurso das personagens. A representação da decadência sugere a inevitabilidade da catástrofe (materializada na impunidade do governador despótico), mas nunca o cenário se confunde com os corpos. Assim, a celebração exaltada dos elementos primordiais - o conflito pictórico entre o laranja-fogo e o azul-mar, em matiz sulcada na rigorosa definição do digital - será apenas o adereço retórico de um discurso empolado e distante, sem possibilidade de intervenção decisiva sobre o juízo ou destino dos corpos.

Leviatã, Andrey Zvyagintsev (2014)