Prenuncia-se no contraste pictórico ensaiado nos primeiros planos de
O País das Maravilhas - na insinuação progressiva de formas
luminosas num plano a negro; no pulsar ritmado de feixes de luz sobre
a pele suave de corpos envoltos em bruma - o apelo longínquo de um
tempo distante. A demarcação acentuada de um conflito retórico
impõe uma condição prévia à narrativa subsequente, antecipando
um foco de perturbação para o processo de composição da história
e das personagens. Se a abordagem formal da introdução sugere uma
vinculação temporal - a sequência inicial termina com a
descoberta, na noite, de um edifício em ruínas -, a estrutura
narrativa do filme assentará na solidez aparente de uma premissa
anacrónica, ecoando pela iminência do colapso (as ruínas) o sopro
distante de fantasmas do passado.
A tolerância de Rohrwacher à incerteza formal dos quadros
abstractos - e talvez o talento de um cineasta possa medir-se, antes
de mais, pela sua tolerância à abstracção - indicia,
simultaneamente, um teste à elasticidade narrativa do filme -
explorado no prolongamento de planos sem função narrativa evidente,
ou na curiosidade diletante de movimentos de câmara ondulantes -, e
a exploração formal de uma premissa
anacrónica e fantasmagórica - pela insinuação, no
contraste pictórico dos planos, de um conflito de linhas de tempo,
ou pela sugestão de sintomática incompletude na fragmentação do
espaço e das personagens. Se o impasse geracional supõe, à
partida, uma divergência inconciliável - a reclusão bucólica de
uma família de apicultores sob o espectro da assimilação burguesa;
o boicote operado pela curiosidade social das filhas adolescentes ao
isolamento imposto por um pai amargurado -, o pendor artesanal do
trabalho de câmara - que anda sempre à mão, sem recurso óbvio a
steadycam ou a gruas - acentua o atavismo inerente à
narrativa de base.
Por receio infundado, Rohrwacher socorre-se de bengalas narrativas
para elucidar questões que a eficácia formal já esclarecera. A
intromissão conveniente de um amigo de longa data na narrativa - que
denuncia o passado
da família em contexto urbano - atenua o peso da
sugestão nessa construção, destacando sem necessidade o que fora
já insinuado. Se a participação no concurso O País das
Maravilhas reclamará
oportunamente a cumplicidade entre a família de apicultores e o
hermetismo arcaico da civilização etrusca (referida no concurso), a
brilhante sequência inicial tinha já anunciado a filiação
distensiva da superfície narrativa (as personagens) a um passado
subterrâneo (fantasmas).
A vocação de Rohrwacher para a
descrição subtil de texturas imateriais - a cena em que as meninas
tentam agarrar um feixe de luz, como em O Espírito da
Colmeia, de Victor Erice; a
predilecção significativa pelo enquadramento de sombras, como em A
Árvore da Vida, de Terrence
Malick - faz ressaltar, por contraste, o ruído nocivo imposto pela
anexação rígida de soluções explicativas. A eloquência criativa
de um olhar transfigurador impõe aos corpos (e aos espaços) uma
fenda temporal que o rigor circunstancial das demarcações vincadas
vem enfraquecer ligeiramente.
Contudo, o vigor refrescante de uma estética decidida jamais é
posto em causa. A disposição intransigente da câmara para a
descoberta de formas vagas no horizonte pictórico - o filme consegue
balizar o espaço de uma memória, algures entre a doçura da saudade
e a iminência da derrocada - revela a rara habilidade de se renovar
energicamente ao longo de uma planificação ardilosa. O esbatimento
da fronteira entre realidade e imaginação - ou entre presente e
passado - é consumado numa das sequências finais do filme, na qual
o enquadramento táctil e inesperado de uma personagem desaparecida
(fantasma) acentuará decisivamente a porosidade (fenda) de uma
barreira situada entre a consistência da matéria e a liberdade do
espírito.
Para além de sublinhar a adequação
dos enquadramentos aproximados à emergência de fantasmas no plano -
numa abordagem que parece retomar Opening Night de
Cassavetes ou The Brown Bunny
de Vincent Gallo -, a sequência referida precipitará a narrativa
numa zona de indistinção irreversível. Como a composição de
espaços e personagens ao longo do filme - a casa dos apicultores não
tem qualquer barreira visível entre as divisões; os corpos parecem esquecer-se, por vezes, das personagens -, a sequência
final de O País das Maravilhas reivindica,
pela impossibilidade da premissa, a actuação libertadora e
omnipotente da câmara sobre a matéria, que faz desaparecer as
personagens do filme num movimento panorâmico sem nenhum corte
evidente - proeza técnica que alude à sequência final de
Profissão: Repórter,
de Antonioni.
A demarcação rigorosa de uma ausência - nesta sequência final -
estabelece um arco de tempo com a descoberta das ruínas na sequência
inicial, fechando pertinentemente um fôlego temporal prolongado. O
impacto desta sequência na superfície da história - a composição
de um arco de tempo que acentua a reverberação agitada de uma
superfície frágil - denuncia o estatuto acessório das adições
marginais (o amigo de longa data, o concurso O País das Maravilhas) que, na tentativa de assegurar a legibilidade das
subtilezas narrativas, impõem focos de destabilização inóquos à
continuidade estética de um filme muito interessante.