terça-feira, 12 de maio de 2015

Os últimos dias, G. W. Pabst (1955)


Cinemateca, 8 de Maio de 2015, 21h30

Tectos baixos e corredores infinitos.
O filme arranca com problemas de legendagem.
Ficam apenas as imagens, os rostos, e um idioma estranho e cortante.
*
Mas, a provar que o cinema lida melhor com o absoluto do que com o concreto, o problema de legendagem foi resolvido. As vozes, agora inteligíveis, veiculam o constrangimento de base do filme, que responde à exigência implícita de um preconceito político. O cinema de propaganda - de mensagem - é tão recriminável quando aponta à direita como quando aponta à esquerda. A imagem é o território natural das ideias, e a sua predicação na rigidez de factos concretos atenua - ou extingue - a carga mística que lhe é inerente.
*
Os últimos dias de Adolph Hitler, num bunker, em Berlim.
O cimento - matéria que reveste os interiores - é o sintoma visível do aparato bélico que se desenrola no exterior. As paredes de cimento simbolizam a protecção contra o exterior, mas também a reclusão irreversível. Os conflitos no exterior - o avanço das tropas russa e americana em direcção a Berlim - são uma mancha abstracta que invade o bunker na forma imaterial de ondas de som - as notícias via rádio. A atmosfera condensa-se. A claustrofobia do lugar - tectos baixos, longos corredores - é acentuada pela sugestão fantasmática do inimigo, em fora-de-campo. No que tem de melhor, Os Últimos Dias é um filme sobre a imaginação. Sobre a construção imagética de um inimigo sem corpo.
*
O constrangimento político inviabiliza o esplendor das formas.
Os comentários - didascálias - pesam sobre a subjectividade das imagens, impondo ao olhar a rigidez de uma direcção. A iniquidade de Hitler prefigura-se mais no autoritarismo exacerbado da voz entoada do que nos gracejos ocasionais dos seus súbditos; mais na representação táctil de uma efígie diabólica e planetária (o cabelo, o bigode) do que na enunciação exaustiva dos crimes praticados. A intromissão de factos concretos na composição estética afasta o filme do domínio dos conceitos absolutos, e perturba a envolvência mística.
A ideia eleva-se, o facto fixa-se.
*
Como Resnais (Marienbad) ou Dreyer (A Paixão de Joana D'arc), Pabst é cineasta de Snapshot e de imagens ideais - Atlântida ou A Boceta de Pandora -, de forte propensão mística e abstracta. Como Welles (O Processo), Dreyer (Ordet) ou Sokurov (O Sol), Pabst é cineasta da reclusão e da claustrofobia, de grande atenção ao pendor geométrico e descritivo da forma. 


quarta-feira, 6 de maio de 2015

The refined taste of fictional characters


Fragmentos de uma entrevista concedida por Mickey Sabbath a Jamie-Lynn Sigler, no programa semanal The Refined Taste of Fictional Characters...

(...)
...enquanto olhava indiscretamente para a parte visível das minhas pernas e parecia imaginar aquilo que não conseguia ver daquele ângulo. Mickey Sabbath alterna o olhar lascivo de um tarado com a intuição omnisciente de um génio. Um génio eloquente com um handicap. Um Hannibal Lecter que trocou a antropofagia pela luxúria, e que escarnece do esclarecimento do texto à medida que a entrevista avança...
(...)
... a barba branca e comprida que, quando está sentado, lhe toca nos joelhos...
(...)
...as preferências cinematográficas (algumas surpresas) e os comentários de Sabbath às escolhas do seu Top 10...

Aleg0ria da Caverna, Sá Leão, (?)
Lolita, Stanley Kubrick, 1962
Lolita, Adrian Lane, 1997
Face-off, John Woo, 1997
Hollow Man, Paul Verhoeven, 2000
"Marco Polo", The Sopranos, 2004
Venus, Roger Mitchell, 2006
Restless, Gus van Sant, 2011
Jeune et Jolie, François Ozon, 2013

Jamie-Lynn - Aleg0ria?
Michey Sabbath - Sim.
J-L - Nunca ouvi falar deste filme, confesso.
M. S. - Uma obra-prima. O peso formativo da indústria pornográfica não deve ser menosprezado. Embora conceda que possa haver diferentes opiniões quanto à subtileza praticada no género.
J-L. - Ok. As duas versões de Lolita? Tem preferência por alguma delas?
M. S. - Dominique Swain.
J-L. - Referia-me aos filmes.
M. S. - Sim.
J-L. - [surpresa] Bem, passemos à frente. Os filmes de acção, com alguma ficção-científica pelo meio. Não sabia que era apreciador do género. O que é que o atraiu, por exemplo, em Face-Off?
M. S. - Dominique Swain...
J-L. - [revira os olhos] Isto não está a...
M. S. - ...mas também a elegância do argumento. O bandido mau e perverso que troca de cara com o polícia bom e honesto (que, como bom pai de família que é, não dá uma foda há dois anos). Depois o bandido mau e perverso regressa à casa do polícia bom e honesto e faz-se passar por ele, mas altera umas coisas por lá: come-lhe a mulher como ela já nem se lembrava que podia ser comida*, e espreita a filha adolescente (Dominique Swain de cuecas) pela fresta da porta...
J-L. - ...correr como eu planeei...
M. S. - ... quem disse que Hollywood não tinha sentido de humor?
J-L. - Passemos ao filme seguinte. Hollow Man? Pensei que, a escolher um filme de Paul Verhoeven, tivesse escolhido Basic Instinct...
M. S. - Eu sou imprevisível.
J-L. - O que o atraíu então para esse filme?
M.S. - A verosimilhança.
J-L. - O filme de um homem que se torna invisível...
M. S. - Sim.
J-L. - Onde está a verosimilhança?
M. S. - No que ele faz em seguida.
J-L. - Não compreendo.
M. S. - Qual é a primeira coisa que faz o homem invisível?
J-L. - Não faço a menor ideia.
M.S. - Entra em casa da vizinha boazona do prédio em frente e salta-lhe para cima, aproveitando que agora ela não consegue vê-lo, o que de resto me parece uma fantasia bastante plausível.
J-L. - É muito coerente nas suas escolhas, não é?
M. S. - Não costumo pensar nisso. Posso tocar-lhe na perna?
J-L. - Não. O episódio da série de televisão não é bem um filme, mas se bem me lembro é o episódio em que o James e a Edie se reconciliam, certo?
M.S. - Tu estavas lá, devias lembrar-te.
J-L. - Acho que não entrei nesse episódio.
M. S. - Entraste.
J-L. - Tenho algum receio de perguntar como é que o Mickey Sabbath...
M. S. - Então não perguntes.
J-L. - Como é que sabe?
M. S. - Lembro-me do teu decote.
J-L. - Passemos à frente...
M. S. - O que me atraiu nesse episódio foi a forma como o teu tio - o Steve Buscemi, em cujas premissas éticas eu me revejo - olhava para as tuas mamas...
J-L. - Vou-lhe pedir para ter mais respeito...
M.S. - ...Para os teus seios?
J-L. - ...e que deixe de falar de mim e do meu corpo [pausa]. Em relação ao Restless, o filme seguinte, não foi a história de amor que o cativou?
M.S. - Não.
J-L. - Admita...
M. S. - Admita-O.
J-L. - Não entendi.
M. S. - Admita-O. O verbo é transitivo. Ou costumava ser, até a eloquência dos cretinos ser largada à solta sobre a terra...
J-L. - Admita-o, então...
M. S. - Não, não o admito.
J-L. - Então porquê esta preferência?
M. S. - Estamos a falar de quê?
J-L. - Do filme Restless, de Gus van Sant, que é uma belíssima história de amor...
M.S. - Sim, Belíssima... [entoação desdenhosa]
J-L. - Algum problema com o adjectivo?
M. S. - Não, nenhum problema.
J-L. - Então responda-me à...
M. S. - ...é engraçada a tentação do superlativo na linguagem esclarecida que vocês usam...
J-L. - Vocês?
M. S. - Na verdade adormeci durante a exibição do filme...
J-L. - [Pausa. Confusa, passa os olhos pelas folhas que tem à frente.] Mas Restless faz parte da sua lista...
M. S. - Sim.
J-L. - [impaciente]...porquê?
M.S. - O único japonês que entra no filme é uma alucinação, o que é um golpe de génio...
J-L. - Não sabia que era racista.
M. S. - E não sou.
J-L. - Parece-me incoer...
M. S. - ...não gosto de japoneses.
J-L. - Em relação a Venus e Jeune et Jolie estamos esclarecidos...
M. S. - Ok.
J-L. - Foi a questão da perversão aquilo que o atraiu nestes dois, não foi?
M. S. - Não sei do que estás a falar.
J-L. - A rapariga de boas famílias que se prostitui em hotéis com homens mais velhos...
M. S. - Estou a ouvir.
J-L. - [Expressão de pânico] Isso é uma intumescência nas suas calças?
M. S. - Não, é o meu pau. Embora na minha época lhe chamássemos...
J-L. - ...vou dar por terminada esta entrevista...
M.S. - ...então porquê? É que a tua descrição foi tão precisa...
J-L. - [levanta-se. Tem uma expressão ofendida] ...que foi irresistível para si...
M. S. - [Mantém-se sentado. Olha para cima enquanto fala]. O que tem a resistência a ver com isto? Estavas a falar de uma rapariga alta, nova, de cabelo castanho-claro, húmido, que se deita com homens mais velhos pelo gozo que isso lhe dá... [olha para as calças] Aí está ele outra vez... Pareceu-me apenas natural...
J-L. - Adeus Mickey.
M. S. - Vais chamar o teu pai, não vais?
J-L. - O meu... Ah, ok**.
M. S. - Vamos acabar isto, eu porto-me bem.
J-L. - Parece-me que já acabámos.
M. S. - Falta um filme.
J-L. - O quê?
M.S. - Falta um filme.
J-L. - [Consulta a lista. Olha para a produtora do programa]. Bem, parece que temos tempo para mais uma das suas respostas.
M. S. - Ainda bem.
J-L. - Tem mesmo um filme ou vai inventar mais qualquer coisa?
M. S. - Na verdade, os outros é que foram inventados.
J-L. - E o décimo não foi?
M. S. - Não. E, sendo assim, o filme que falta é o primeiro e não o décimo, porque foi o único em que pensei realmente enquanto vinha para cá.
J-L. - [Exausta] Então e qual é o filme?
M. S. - Match Point, do Woody Allen, de 2005.

Aleg0ria da Caverna, Sá Leão, (?)
Lolita, Stanley Kubrick, 1962
Lolita, Adrian Lane, 1997
Face-off, John Woo, 1997
Hollow Man, Paul Verhoeven, 2000
"Marco Polo", The Sopranos, 2004
Match Point, Woody Allen, 2005
Venus, Roger Mitchell, 2006
Restless, Gus van Sant, 2011
Jeune et Jolie, François Ozon, 2013

J-L. - Que é um belíssimo filme...
M.S. - Sim, um belíssimo filme...
J-L. - Pode parar com o sarcasmo?
M. S. - Posso.
J-L. - Se bem me lembro, o Woody adopta muito livremente a obra de Dostoievsky, Crime e Castigo...
M. S. - Sim, muito livremente...
J-L. - [Inquisitiva] Pensei que tinha parado com o sarcasmo...
M. S. - Sim.
J-L. - Quando repete o que eu digo dá-me a ideia de que está a ser sarcástico.
M. S. - É um equívoco frequente.
J-L. - O quê?
M.S. - Interpretar mal a repetição como sendo sarcástica.
J-L. - Qual o significado da repetição, então?
M.S. - Regra geral, a repetição é usada para enfatizar uma ideia ou pensamento. Também pode ser usada como figura de estilo, embora esse me pareça um recurso francamente pobre da ferramenta.
J-L. - Porque é que repetiu o que eu disse? - era esta a minha pergunta.
M. S. - Concordância. Também me parece que o Woody [entoação sarcástica] adapta muito livremente a obra de Dostoievsky...
J-L. - De que forma?
M. S. - Em primeiro lugar, a vida sexual do Rodia evoluiu bastante desde que trocou São Petersburgo por Londres...
J-L. - ...e mais alguma coisa?
M. S. - Sim, o que omiti na declaração de abertura é, na verdade, a tese fundamental da minha escolha.
J-L. - Pode destapar um pouco o véu?
M. S. - Se tu subires um pouco a saia.
J-L. - [Jamie-Lynn faz uma expressão sensual e sobe ligeiramente a saia, deixando à vista um pouco de uma liga].
M. S. - Não foi bem o que esperava, mas tento não desrespeitar os acordos que estabeleço.
J-L. - [Puxa a saia para baixo com irritação. Revira os olhos] E...?
M. S. - É comum recorrer-se a conjunções para estabelecer uma ligação entre duas ideias ou para enumerar elementos, mas os miúdos usam-nas para acentuar o enorme vazio que existe entre tudo aquilo que não sabem e tudo aquilo que desconhecem...
J-L. - Com quem julga que está a falar?
M.S. - Jamie-Lynn?
J-L. - Vai responder à pergunta?
M. S. - Contigo, parecia-me óbvio.
J-L. - [Consulta a produtora do programa com o olhar. Torna a olhar para Sabbath em desespero]. Porquê a escolha de Match Point para os seus filmes preferidos?
M. S. - Acho que o factor decisivo - e genial - é o ponto de partida. Um homem que se casa para espicaçar a relação adúltera merece toda a minha admiração. E parece-me uma solução inovadora no que respeita às possibilidades de tesão de um indivíduo.

* Fuck her brains out no original
** Mickey refere-se desdenhosamente a Tony Soprano, personagem interpretada por James Gandolfini na série The Sopranos, que fazia de pai de Meadow Soprano, personagem interpretada por Jamie-Lynn Sigler.


Um pormenor do decote de Jamie-Lynn Sigler no episódio referido por Sabbath

domingo, 3 de maio de 2015

Os Sonâmbulos, Volume I - Pasenow ou o Romantismo, Hermann Broch (cont)

Quem segue alguém na rua, ainda que por mero automatismo e com uma indiferença aparente, não pode deixar de em breve formular vários desejos, bons e maus, a respeito da criatura a quem segue...
(...)
O amor é algo de absoluto (...) e se o absoluto tem de se exprimir em termos terrenos, cai sempre no patético, visto ser indemonstrável...
(...)
Só há uma coisa verdadeiramente patética e tem um nome: eternidade. E, como não há para o homem eternidade positiva, é preciso que ela se torne negativa e chama-se: não-tornar-a-ver. Se eu partir, está aí a eternidade. Então você estará eternamente longe e eu posso dizer que a amo...
(...)

Creio com a mais profunda fé que só numa terrível exacerbação da estranheza, só quando esta é, por assim dizer, levada ao infinito, ela se pode transformar no seu oposto, no conhecimento absoluto, e pode então desabrochar aquilo que, à sua frente, paira como objectivo inatingível do amor, mas que o constitui: o mistério da unidade. De uma lenta habituação recíproca, de uma recíproca familiarização, não nasce mistério nenhum...

edições 70
trad. António Ferreira Marques

Hermann Broch

sexta-feira, 1 de maio de 2015

Os Sonâmbulos, Volume I - Pasenow ou o Romantismo, Hermann Broch

(...)
Quanto ao assunto da farda, Bertrand poderia exprimir-se mais ou menos assim:
Tempos houve em que a Igreja era o único juiz a julgar o homem e todos tinham consciência de que eram pecadores. Hoje é o pecador que tem de julgar o pecador, para impedir que todos os valores soçobrem na anarquia e, em lugar de chorar com ele, o irmão sente-se na obrigação de dizer ao irmão: <procedeste mal>. E se outrora o traje clerical, como algo de inumano, era o único a distinguir-se dos outros, e se então, mesmo no uniforme e no hábito talar, ainda transparecia o civil, tendo-se perdido a grande intolerância da fé houve que pôr a toga terrena no lugar da celeste, tornou-se necessário que a sociedade se dividisse em hierarquias e uniformes terrenos e que estes se elevassem a valores absolutos, substituindo a fé.
(...)
E como é sempre prova de romantismo tornar o terreno absoluto, o austero e verdadeiro romantismo do nosso tempo é o romantismo da farda, como se houvesse uma ideia supraterrena e supratemporal da farda, ideia que não existe, mas possui uma tal intensidade que se apodera do homem com muito mais força do que qualquer outra vocação terrena, ideia inexistente e no entanto tão impetuosa que converte o portador da farda num possesso da farda, nunca num profissional no sentido civil da palavra, talvez, precisamente, porque o homem de farda se sente repleto de consciência de realizar o estilo de vida próprio da sua época e de realizar assim, igualmente, a segurança da sua própria existência.
(...)

...um verdadeiro uniforme assegura a quem o enverga uma nítida demarcação da sua pessoa em relação ao mundo envolvente...

edições 70
trad. António Ferreira Marques



They Live, John Carpenter (1988)

quinta-feira, 30 de abril de 2015

Offbeat, Cais Sodré Funk Connection (2015) - Videoclip

O videoclip de Offbeat alicerça-se no apelo cantado à diversidade - Baby I don't care if you're black or white -, signo populista - e imagem de marca dos Cais Sodré Funk Connection - que é traduzido no vídeo pela reunião improvável de personagens-tipo com proveniências díspares - e pela vinculação subreptícia dessa heterogeneidade a uma modelação erótica variada.
O trajecto narrativo do videoclip transita dos modelos consentâneos do erotismo conservador - a reprodução de clichés do erotismo masculino e feminino - para a alteridade fugidia de padrões alternativos - a sexualidade indefinida do travestimento ou o fulgor tardio de uma senhora idosa. A estranheza dessa imanência sexual é destacada pela alternância dos episódios eróticos com capítulos de abstracção nonsense - a criança com a espingarda, o anão mascarado, o registo performativo dos músicos -, conferindo ao todo a textura de um exercício de bestialidade - em contextualização que lembra vagamente o videoclip Fluorescent Adolescent (2007), dos Arctic Monkeys. 
Os diferentes registos são organizados em ritmo compassado pelos quadros fixos - em planos frontais inspirados em Wes Anderson -, que funcionam tanto melhor quanto mais estilizados. Os planos nocturnos, em que se acentua o contraste entre zonas de luz e sombra - o plano de um músico encostado à parede, destacado do cone de sombra circundante pela luz picada que cai sobre si; a dança do homem mascarado num corredor sombrio, iluminada pelas centelhas faiscantes de uma tocha acesa -, veiculam perfeitamente a carga de sombra evocada pela música. Em sentido inverso, os planos captados de dia - sobretudo aqueles em que se explora a profundidade de campo - realçam excessivamente a textura rugosa do espaço, perdendo-se pela precisão do contexto a aura sombria destacada anteriormente.  


Quand Je Ne Dors Pas, Tommy Weber (2015) - Indie Lisboa

Par hasard.
Perfilado como herdeiro de Truffaut por um espectador, Tommy Weber - que esteve presente na sessão de dia 29 de Abril, no Cinema Ideal - disse que terá sido par hasard que a personagem principal de Quand je ne dors pas ganhou o nome de Antoine (reagindo à suposta filiação do protagonista com Antoine Doinel). Contudo, lá foi explicando que Les 400 Coups (1959) - assim como os restantes filmes da série de Truffaut com Jean-Pierre Léaud - era sombra imanente da sua reduzida equipa de produção.
Ainda que fosse apenas por circunstância - e não é -, o contexto estético de Quand je ne dors pas - a noite de Paris, o discurso errático de um protagonista, a interferência das canções na construção narrativa - evocaria sempre o peso formativo de uma herança cultural. Conquanto Weber não consinta - fala de um filme escrito e realizado por instinto -, os elementos fílmicos circunscrevem um território balizado por algumas referências incontornáveis: À Bout de Souffle (1960) de Godard à cabeça, mas também Le Signe du Lion (1962) de Éric Rohmer ou a referida série de Truffaut com Léaud.
Em À Pala de Walsh, João Lameira destaca a afinidade de Quand je ne dors pas com After Hours (1985), e percebe-se a alusão. Mas ao passo que no filme de Scorcese a finalidade manifesta de um desejo - como Ulisses, a personagem apenas quer regressar a casa - era obstruída por uma série de circunstâncias bizarras, em Quand je ne dors pas é o valor imperativo dos episódios circunstanciais - os encontros fortuitos, a sorte na raspadinha - que define o destino de Antoine. Se necessidade houvesse de uma referência além-Atlântico - e não me parece que haja -, Permanent Vacation (1980) de Jim Jarmusch seria um exemplo mais representativo da dinâmica deste filme.
Weber atenua a fadiga inerente à representação exaustiva de um percurso errático - o filme é manifestamente incoerente, e o fôlego intermitente do fio condutor depende do valor da peripécia relatada - pela generosidade formal com que aborda as cenas. A intromissão ocasional do estilo em Quand je ne dors pas tem valor de contingência, e deve-se sobretudo à descrição cuidadosa da personagem principal - a planificação aproximada; a letra sibilada de canções sem música - ou a imponderáveis de produção - o recurso ao preto e branco estabiliza as irregularidades cromáticas; os travellings com recurso a Steadycam têm para a narrativa o estatuto de fuga, e contornam a proibição urbana do uso de tripés.
Para além dos restantes pressupostos inerentes a um processo criativo, a identidade do filme independente deve ser preservada (também) pelo pendor artesanal dos métodos utilizados. Quand je ne dors pas é descarnado e desinteressado, e isso - acima de tudo o resto - valida-o como objecto Indie.


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quarta-feira, 29 de abril de 2015

Homesick, Jakob M. Erwa (2015) - IndieLisboa

Ao nível da forma, Homesick anda à boleia de Michael Haneke no que este tem de bom - o tratamento do som como elemento de perturbação do espaço; a compartimentação cuidada dos interiores - e no que tem de mau - a tendência defensiva da forma na restrição geométrica dos planos; a tentativa de desconfortar o espectador pela familiaridade forçada da sequência final.
A premissa do filme - o impacto de uma mudança de casa na vida de um jovem casal - retoma Rosemary's Baby, de Polanski, do qual herda a questão da permeabilidade de um apartamento face à acção vigilante e inóspita de estranhos, ou a obsessão crescente de uma rapariga solitária face a fenómenos de inquietante estranheza. Conquanto o primeiro terço seja interessante - quando essa estranheza ainda não se concretizou em figuração de loucura -, a exigência (auto-imposta) de um desfecho nítido assoma de forma prejudicial à segunda metade do filme.
Num contratempo recorrente de argumentos que crescem em redor de um esquema binário - serão os fenómenos experimentados por Jessica o produto da sua loucura ou o resultado de uma maquinação? -, a antevisão distante de uma solução para a narrativa condiciona o desenvolvimento do filme, compromentendo-o com essa dúvida central. As reviravoltas que antecedem o desenlace ilustram mais a incerteza do realizador do que a pretensa loucura da protagonista.
Ainda que a primeira metade de Homesick tenha momentos de bom suspense - a textura do digital nos belíssimos planos do exterior do edifício; o tratamento claustrofóbico da luz e do som; a sequência em que, a meio da noite, Jessica sai à rua e desaparece entre as sombras -, o argumento escrito parece ter sido pensado apenas para uma curta-metragem, e o filme não sobrevive ao improviso que o arrasta dolorosamente até final.

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