Par hasard.
Perfilado como herdeiro de Truffaut
por um espectador, Tommy Weber - que esteve presente na sessão de
dia 29 de Abril, no Cinema Ideal - disse que terá sido par
hasard que a personagem
principal de Quand je ne dors pas
ganhou o nome de Antoine (reagindo à suposta filiação do
protagonista com Antoine Doinel). Contudo, lá foi explicando que Les
400 Coups (1959) - assim como os
restantes filmes da série de Truffaut com Jean-Pierre Léaud - era
sombra imanente da sua reduzida equipa de produção.
Ainda que fosse apenas por
circunstância - e não é -, o contexto estético de Quand
je ne dors pas - a noite de
Paris, o discurso errático de um protagonista, a interferência das
canções na construção narrativa - evocaria sempre o peso
formativo de uma herança cultural. Conquanto Weber não consinta -
fala de um filme escrito e realizado por instinto -,
os elementos fílmicos circunscrevem um território balizado por
algumas referências incontornáveis: À Bout de Souffle (1960) de
Godard à cabeça, mas também Le Signe du Lion (1962) de
Éric Rohmer ou a referida série de Truffaut com Léaud.
Em À Pala de Walsh, João Lameira
destaca a afinidade de Quand je ne dors pas
com After Hours (1985), e
percebe-se a alusão. Mas ao passo que no filme de Scorcese a
finalidade manifesta de um desejo - como Ulisses, a personagem apenas
quer regressar a casa - era obstruída por uma série de
circunstâncias bizarras, em Quand je ne dors pas é
o valor imperativo dos episódios circunstanciais - os encontros
fortuitos, a sorte na raspadinha - que define o destino de Antoine.
Se necessidade houvesse de uma referência além-Atlântico - e não
me parece que haja -, Permanent Vacation (1980) de Jim Jarmusch seria um exemplo mais representativo da dinâmica
deste filme.
Weber atenua a fadiga inerente à
representação exaustiva de um percurso errático - o filme é
manifestamente incoerente, e o fôlego intermitente do fio condutor
depende do valor da peripécia relatada - pela generosidade formal
com que aborda as cenas. A intromissão ocasional do estilo em Quand
je ne dors pas tem valor de
contingência, e deve-se sobretudo à descrição cuidadosa da
personagem principal - a planificação aproximada; a letra sibilada de canções
sem música - ou a imponderáveis de produção - o recurso ao preto
e branco estabiliza as irregularidades cromáticas; os travellings
com recurso a Steadycam têm
para a narrativa o estatuto de fuga, e contornam a proibição urbana
do uso de tripés.
Para além dos restantes pressupostos inerentes a um processo
criativo, a identidade do filme independente deve ser preservada
(também) pelo pendor artesanal dos métodos utilizados. Quand je
ne dors pas é descarnado e desinteressado, e isso - acima de
tudo o resto - valida-o como objecto Indie.
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