quarta-feira, 8 de abril de 2015

Leviatã, Andrey Zvyagintsev (2014)

O contratempo óbvio e reincidente de cinematografias radicadas no rigor formal do plano fixo prende-se com a dificuldade de articular o quadro cristalizado com as solicitações (narrativas e formais) de movimento. Zvyagintsev jamais cede a variações da métrica e, se a composição cuidada dos quadros serve a descrição atenta e precisa do espaço da acção, as personagens ressentem-se da invariabilidade de tomadas de vista da câmara, assomando ao plano como criações incompletas e espartilhadas, que anunciam - na hesitação da sua corporização - um conflito entre a matéria equívoca e imprevisível dos corpos e a textura impoluta dos planos.
A opção de arredar das personagens o domínio da mitologia - pronunciado no título e patente na composição atmosférica do espaço - inscreve uma ordem conflitual na estrutura de Leviatã. Se Zvyagintsev descobre, na duração e no rigor dos enquadramentos, o fascínio feérico exercido pela morfologia acidentada dos lugares representados, jamais possibilita, no entanto, que esse encantamento se abata sobre as personagens do filme. O realismo material que enquadra o desenvolvimento narrativo - e que vai do impasse legal ao drama familiar - concretiza um conflito estético (e sensorial) para o qual Zvyagintsev nunca encontra uma solução ágil. A opção de segregar, no plano, os domínios da magia (mito) e do prosaico (humano), incorre na encenação de um conflito dialético e ruidoso, que perturba a apreensão da continuidade fílmica ao exigir que o espectador alterne a contemplação desimpedida do mágico com a identificação emocional no conflito narrativo.
A perturbação fílmica causada pela segregação, no plano, dos dois domínios (mitológico e humano), é tanto maior quanto o realismo empregue se manifeste insuficiente para a propulsão emocional do espectador. Algures entre a distância figurativa de Bresson e a entrega desimpedida de Cassavetes, as coordenadas do trabalho de actores parecem ser menos o resultado de uma preferência estética do que a consequência de uma gestão incapaz. Tanto assim é que as sequências de maior compromisso emocional - as duas cenas em que se concretiza o adultério, a reacção explosiva de Kolya, o desaparecimento de Lylia - acontecem em fora de campo. A fragilidade da abordagem realista é denunciada também pelo maneirismo excessivo das personagens, tomando o exagero dos gestos - a voz arrastada dos bêbedos, as gargalhadas despropositadas em cenas improváveis - o lugar da insuficiência das emoções.
Herdeiro de uma tradição cultural e intelectual de perfil marcadamente idiossincrático, Zvyagintsev parece conformar-se a uma linguagem formal indistinta e (cada vez mais) planetária, sem rasgos identitários que a destaquem de uma competência algo anódina. A articulação entre planos não difere grandemente das práticas correntes no cinema de expressão anónima e industrial, em que se sacrifica a continuidade emocional das cenas em favor da alternância fugaz entre narrativas paralelas.
A descrição de um lugar em ruínas - as ossadas de monstros marítimos, os frescos oxidados na igreja deteriorada, as barcaças de pesca engolidas pelo mar - nunca abandona o âmbito da analogia, jamais se interpondo no percurso das personagens. A representação da decadência sugere a inevitabilidade da catástrofe (materializada na impunidade do governador despótico), mas nunca o cenário se confunde com os corpos. Assim, a celebração exaltada dos elementos primordiais - o conflito pictórico entre o laranja-fogo e o azul-mar, em matiz sulcada na rigorosa definição do digital - será apenas o adereço retórico de um discurso empolado e distante, sem possibilidade de intervenção decisiva sobre o juízo ou destino dos corpos.

Leviatã, Andrey Zvyagintsev (2014)



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