O contratempo óbvio e reincidente de cinematografias radicadas no
rigor formal do plano fixo prende-se com a dificuldade de articular o
quadro cristalizado com as solicitações (narrativas e formais) de
movimento. Zvyagintsev jamais cede a variações da métrica e, se a
composição cuidada dos quadros serve a descrição atenta e precisa
do espaço da acção, as personagens ressentem-se da invariabilidade
de tomadas de vista da câmara, assomando ao plano como criações
incompletas e espartilhadas, que anunciam - na hesitação da sua
corporização - um conflito entre a matéria equívoca e
imprevisível dos corpos e a textura impoluta dos planos.
A opção de arredar das personagens o domínio da mitologia -
pronunciado no título e patente na composição atmosférica do
espaço - inscreve uma ordem conflitual na estrutura de Leviatã.
Se Zvyagintsev descobre, na
duração e no rigor dos enquadramentos, o fascínio feérico
exercido pela morfologia acidentada dos lugares representados, jamais
possibilita, no entanto, que esse encantamento se abata sobre as
personagens do filme. O realismo material que enquadra o
desenvolvimento narrativo - e que vai do impasse legal ao drama
familiar - concretiza um conflito estético (e sensorial) para o qual
Zvyagintsev nunca encontra uma solução ágil. A opção de
segregar, no plano, os domínios da magia (mito) e do prosaico
(humano), incorre na encenação de um conflito dialético e ruidoso,
que perturba a apreensão da continuidade fílmica ao exigir que o
espectador alterne a contemplação desimpedida do mágico com a
identificação emocional no conflito narrativo.
A perturbação fílmica causada
pela segregação, no plano, dos dois domínios (mitológico e
humano), é tanto maior quanto o realismo empregue se manifeste
insuficiente para a propulsão emocional do espectador. Algures entre
a distância figurativa de Bresson e a entrega desimpedida de
Cassavetes, as coordenadas do trabalho de actores parecem ser menos o
resultado de uma preferência estética do que a consequência de uma
gestão incapaz. Tanto assim é que as sequências de maior
compromisso emocional - as duas cenas em que se concretiza o
adultério, a reacção explosiva de Kolya, o desaparecimento de
Lylia - acontecem em fora de campo. A fragilidade da abordagem
realista é denunciada também pelo maneirismo excessivo das
personagens, tomando o exagero dos gestos - a voz arrastada dos
bêbedos, as gargalhadas despropositadas em cenas improváveis - o
lugar da insuficiência das emoções.
Herdeiro de uma tradição cultural e intelectual de perfil
marcadamente idiossincrático, Zvyagintsev parece conformar-se a uma
linguagem formal indistinta e (cada vez mais) planetária, sem rasgos
identitários que a destaquem de uma competência algo anódina. A
articulação entre planos não difere grandemente das práticas
correntes no cinema de expressão anónima e industrial, em que se
sacrifica a continuidade emocional das cenas em favor da alternância
fugaz entre narrativas paralelas.
A descrição de um lugar em ruínas - as ossadas de monstros
marítimos, os frescos oxidados na igreja deteriorada, as barcaças
de pesca engolidas pelo mar - nunca abandona o âmbito da analogia,
jamais se interpondo no percurso das personagens. A representação
da decadência sugere a inevitabilidade da catástrofe (materializada
na impunidade do governador despótico), mas nunca o cenário se
confunde com os corpos. Assim, a celebração exaltada dos elementos
primordiais - o conflito pictórico entre o laranja-fogo e o
azul-mar, em matiz sulcada na rigorosa definição do digital - será
apenas o adereço retórico de um discurso empolado e distante, sem
possibilidade de intervenção decisiva sobre o juízo ou destino dos
corpos.
Leviatã, Andrey Zvyagintsev (2014) |
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