A improvável agitação formal dos
primeiros planos de Olhos Grandes -
das tangenciais elipses de tempo impostas pelos jump cuts
à subjectivização turbulenta determinada pelo uso da câmara à
mão - indicia menos a perturbação interior das personagens
representadas do que a indecisão estética do seu criador. O aparato
formal dessa primeira sequência denuncia a consistência debilitada
dos fundamentos narrativos do filme, e preconiza um trajecto
acidentado que jamais silenciará a sua própria indefinição.
Ao invés de crescer em torno de um
eixo sólido e esclarecido, a narrativa de Olhos Grandes
ramifica-se a cada nova sequência, impondo ao espectador a
assimilação insustentável de múltiplas direcções, seja ao nível
do tema - a insubordinação da mulher talentosa à demarcação
prevista pelos parâmetros sociais; o crescimento viral e ubíquo de
um ícone emancipado; a divergência irrevogável entre a reclusão
criativa e a exposição mediática - ou do género - a intromissão
distensiva do biopic
pelo recurso a imagens de arquivo; a expectativa do drama familiar
perfilada na soturnidade claustrofóbica do espaço interior; a
incursão tardia pela comédia burlesca na histriónica sequência
de tribunal -, hipotecando pelo avanço hesitante a possibilidade de
um compromisso emocional desimpedido.
A renovação titubeante de um
artifício narrativo recorrente - a marginalidade solitária do
artista enclausurado, categoria em que Margaret Keane se encontra com
Edward Scissorhands ou Willy Wonka - é pronunciada por Tim Burton
pela sobreposição solene do cenário às personagens: a concluir o
preâmbulo, a agitação da câmara dá lugar a uma sequência de
planos fixos perfeitamente enquadrados, que mostram Margaret
abandonar a polidez sofisticada de uma rua colorida e cintilante (um
pastiche da rua em que
se desenrolava a acção de Eduardo Mãos-de-Tesoura)
e reaparecer, depois de um corte, na indistinção asfixiante de um
contexto urbano.
A deslocação geográfica do
sujeito poético - que passa da imaginação onírica ao anonimato
despersonalizante - anuncia a iminência de um conflito que, no
entanto, só timidamente se manifesta. Se, em iniciativa inaudita,
Burton suspende o credo da fábula e aquiesce à representação de
um cenário realista, a inovação pictórica serve menos a
circunscrição localizada de uma zona de tensão do que a renovação
previsível da premissa convencional. A destruição redentora da
indistinção urbana por intermédio de um olhar in(ter)ventivo -
hipótese prefigurada na imagem dos Olhos Grandes
e sugerida pela irrupção de Margaret no aparato amorfo da cidade -
é preterida negligentemente em favor da cómoda variação narrativa
sobre um tema persistente.
Ao invés de lhe impor uma inflexão
decisiva, a tímida tentativa de
fazer abalar as convenções internas da obra de Tim Burton - ao
deslocar o epicentro da acção para um contexto de índole realista
- reforça involuntariamente a relação de dependência que essa
obra mantém com a eloquência impositiva dos cenários. A
incapacidade de satisfazer a premissa metafórica do título - e
transferir o centro óptico do filme para os Olhos Grandes
- evidencia a ineficácia da efabulação mágica face ao quotidiano
austero, validando de forma inadvertida a solução narrativa
contestada no filme: a do estatuto imprescindível de uma mediação
deletéria (Walter Keane) face à insuficiência transfiguradora do
impulso artístico.
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