(...)
Quanto ao assunto da farda, Bertrand poderia exprimir-se mais ou
menos assim:
Tempos houve em que a Igreja era o único juiz a julgar o homem e
todos tinham consciência de que eram pecadores. Hoje é o pecador
que tem de julgar o pecador, para impedir que todos os valores
soçobrem na anarquia e, em lugar de chorar com ele, o irmão
sente-se na obrigação de dizer ao irmão: <procedeste mal>. E
se outrora o traje clerical, como algo de inumano, era o único a
distinguir-se dos outros, e se então, mesmo no uniforme e no hábito
talar, ainda transparecia o civil, tendo-se perdido a grande
intolerância da fé houve que pôr a toga terrena no lugar da
celeste, tornou-se necessário que a sociedade se dividisse em
hierarquias e uniformes terrenos e que estes se elevassem a valores
absolutos, substituindo a fé.
(...)
E como é sempre prova de romantismo tornar o terreno absoluto, o
austero e verdadeiro romantismo do nosso tempo é o romantismo da
farda, como se houvesse uma ideia supraterrena e supratemporal da
farda, ideia que não existe, mas possui uma tal intensidade que se
apodera do homem com muito mais força do que qualquer outra vocação
terrena, ideia inexistente e no entanto tão impetuosa que converte o
portador da farda num possesso da farda, nunca num profissional no
sentido civil da palavra, talvez, precisamente, porque o homem de
farda se sente repleto de consciência de realizar o estilo de vida
próprio da sua época e de realizar assim, igualmente, a segurança
da sua própria existência.
(...)
...um verdadeiro uniforme assegura a quem o enverga uma nítida
demarcação da sua pessoa em relação ao mundo envolvente...
edições 70
trad. António Ferreira Marques
They Live, John Carpenter (1988)
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